Estávamos em Maio mas o tempo estava frio e escuro.
Sentada na minha mesa com um rolo de serpentinas à frente, ia tentando seguir as instruções que a Mª Amélia ia dando.
Queria ela que nós, meninos de 4/5 anos, fizéssemos uma dobragem de fitas de papel de serpentina para fazermos uma espécie de acordeão para a festa de final de ano que se aproximava.
Não é que o acordeão não fosse interessante…mas não era muito…nem dava para tocar ou fazer barulho…
Os olhos fugiam-me para os ramos cheios de folhas verdinhas a pingatem de gotas de chuva.
A Mamé normalmente deixava-nos ir dar uma corrida á volta do recreio mas naquele dia não podíamos porque o chão estava todo molhado.
As minhas pernas já tinham experimentado todas as posições possíveis.
Perna direita debaixo do rabo, perna esquerda debaixo do rabo, as duas pernas debaixo do rabo… A cadeira saracoteava periclitante com os meus bichos carpinteiros.
Eu gostava muito da Mamé e fazia os possíveis e impossíveis por me portar bem.
Mas quis o destino que a Mamé tivesse que sair da sala e fosse substituída pela Gó.
Estava o caldo entornado.
As pernas ganharam vida própria, a cadeira também e de repente ali me vi de rabo no chão com a cara da Gó por cima da minha e ainda por cima uma cara de poucos amigos!!!
Raramente batiam nas crianças do Jardim escola, mas os castigos no quarto escuro (despensa/vestiário) eram frequentes.
Assim, lá fui eu para o dito castigo que de tanto nos conhecermos já nos tratámos por tu cá, tu lá.
Conhecia os cantinhos todos e sabia onde me colocar para receber melhor a luz da bandeira de vidro da porta.
Normalmente as estadias eram curtas, porque a Mamé conhecendo a minha doença dos bichos carpinteiros, pouco tempo me deixava sem supervisão.
Mas não tinha sido a Mamé a pôr-me ali.
Lá do meu canto, dei conta de os colegas descerem para o salão da cave onde víamos os filmes e onde estava a minha cadeira pequenina. (todos tínhamos uma cadeira própria para ver os filmes)
“Talqualmente” como no sozinho em casa, vi-me no meio do silêncio fechada no quarto escuro.
Nunca fui rapariga de me atrapalhar muito com os castigos.
Tinha mais medo da consequência dos castigos quando a minha madrinha soubesse, do que dos castigos em si e aquele quarto escuro era muito mais claro que a despensa de casa da madrinha que só tinha a luz que entrava pela fisguinha debaixo da porta ou pelo buraco da fechadura.
Como aquilo não era um filme, não tinha as distrações que o Kevin tinha na sua extraordinária casa americana.
Pouco tinha com que me entreter, então recorri àquilo que existia: casacos, camisolas, gabardinas, galochas, panos do pó e as vassouras do canto.
Aquilo foi um veste e despe que nunca mais acabava até que comecei a vestir casacos uns por cima dos outros, e luvas e cachecóis e garruços.
Não sei como aconteceu, porque só me lembro de acordar com a D. Gabriela a afastar os cachecóis da minha cara e a olhar para mim com uma cara de susto e admiração
Embora as sobrancelhas fossem de zangada, a boca queria sorrir embora ela não quisesse…
Assarapantada com aquele despertar repentino, vi-me ali no canto, por cima de um monte de casacos, com outros tantos vestidos, galochas e luvas calçadas e montes de cachecóis à volta do pescoço.
A D. Gabriela pôs-me em pé enquanto a Mª Amélia estava a aparecer à minha procura trazendo de arrasto os seus meninos para os preparar para a saída.
Então, a D. Gabriela puxou-me para o hall, aquele de onde partiam todas as portas das salas, menos a da 4ª classe que era ao cimo das escadas.
Quando os outros me viram, primeiro ficaram calados, espantados, sem saberem muito bem quem estava enfiada dentro daquele monte de casacos que entretanto a Mamé ia descascando.
Quando a minha cabeça apareceu ao léu, claro que foi gargalhada geral e ainda pior, porque os mais velhos estavam a chegar e eram muito piores do que os meus colegas.
Então a D. Gabriela virou-se para eles e disse:
-Estão a ver o que acontece aos meninos que se portam mal? Transformam-se em Marafonas!
Aquela frase sim.
Aquela frase mexeu comigo e trouxe algumas consequências. Mas eu conto noutro dia.
Para já fiquem-se com a Quica Marafona
Beijinhos

Ah, não fiquei traumatizada. Lembro-me do episódio e olho para ele com um sorriso nos lábios.