Estavamos quase no fim do mês de Maio.
Por esta altura começávamos a passar os fins de semana na serra.
O primeiro fim de semana era sempre o melhor.
A casa estava fechada desde a Páscoa.
Quando se abria a grande porta de madeira da entrada, éramos invadidos por um misto de cheiros de lareira, do couro dos sofás, de naftalina que vinha dos quartos… e das plantas secas espalhadas pela sala em cestos de várias cores.
Eu era a única criança no meio de 4 adultos já não muito novos.
A primeira coisa que fazia era correr para o meu quarto, atirar-me para cima da cama e ouvir a casa!
As portas estalavam, no quarto ao lado, a porta do guarda vestidos rangia, o avô abria a gaveta da cómoda(que pouco tempo depois passou a ser minha ) que custava sempre a fechar…
As janelas por mais bem fechadas que estivessem, abanavam sempre com o vento…
Depois destas sensações momentâneas vinham outras preocupações… as aranhas!
No primeiro fim de semana era um corrupio de aranhiços e aranhões a enfiarem-se por todos os buracos, principalmente, no banco onde se guardava a lenha que era uma maternidade de 1ª categoria para os aranhiços.
Na cozinha a Guigui, ainda mal recomposta do enjoo das curvas e do cheiro do carro, afadigava-se a acabar o almoço que vinha meio preparado da Covilhã.
Dos armários saiam os cobertores de lã escuros e pesados e eram postos a arejar às janelas e para aquecerem ao sol.
Enquanto tudo se preparava em casa, eu como menina de 7 anos, cumpria a minha primeira tarefa. Ir buscar água fresca para beber.
Pegava no cântaro de barro, punha o sempre obrigatório chapéu e lá ia eu!
Por muito habituada que estivesse à serra, era sempre surpreendida pela sua beleza nesta altura.
O amarelo saltava naqueles olhos de menina pequena, espalhado em montes de giestas, de carqueja e de outras plantas que despontam por todo o lado, como se fossem sóis perdidos nas serranias…
Os bicharocos mais variados zumbiam à volta das flores e pontinhas de caudas tenras fugiam por entre as pedras que pisava.
Ao lado direito, a capela e a ribeirinha que corria ao lado, piscavam o olho, desafiando para brincadeiras, mas apesar da vontade de brincar ser grande, levava o cântaro na mão e a água era precisa para o almoço.
Chegada à fonte por baixo do Turismo, lá punha o cântaro a encher enquanto metia as mãos na água gelada do pequeno tanque. Depressa arranjava uma folha ou um pau que punha a boiar na água enquanto o cântaro cheio, extravasava e voltava a extravasar a sua água límpida e gelada.
De volta a casa, as coisas eram mais complicadas… era a subir, o cântaro estava muito mais pesado, e… partia!
Pegava nele com as 2 mãos, língua de fora para ajudar, e pequenas paragens em que o pousava sobre uma pedra lisa para descansar um pouco.
O avô por essa altura andava um pouco cansado, mas mesmo assim, aparecia sempre a meio do caminho para ajudar a levar o cântaro.
Nem precisávamos de falar. Bastava olharmos um para o outro para nos entendermos. Eram assim os amigos com mais de 70 anos entre nascimentos.
Depois de almoço, era o descanso obrigatório na grande varanda virada a nascente com o sol a brincar nos vitrais de mil cores da janela…
Depois da sesta, lá ia a saltitar à frente do avô da madrinha em direção ao Turismo.
Enquanto eles tomavam um cafézinho eu punha a brincadeira em dia no escorrega, nos cavalinhos e nos baloiços, prenhes de atenção e de risos de crianças.
Depois, enquanto o avô ia até ao Hotel procurar o seu amigo Vaz Serra, dava a mão à madrinha Luísa e íamos pelo caminho fora, apanhar as mais variadas plantas para substituir as que estavam nos cestos.
A minha madrinha não era de escaladas nem de grandes caminhadas, mas a tranquilidade da serra, era ela que a transmitia naqueles bocadinhos de tarde em que metíamos a primavera em cestos e enchíamos a casa de perfumes com cheiro a serra, a sol, a liberdade.
Ainda hoje, gosto de fazer isso…
Por volta das 6 horas acendia-se a lareira para aquecer a casa fria de estar fechada.
As histórias apareciam sem serem chamadas. Não havia televisão. Havia um rádio, havia livros, havia conversas, havia jogo de cartas, havia colo…
O fim da noite era coroado pela cocofonia dos canos do quarto de banho onde as torneiras preguiçosas de ferrugem, emitiam gemidos, roncos, soluços antes de verterem as sua água acastanhada que deixava um risco no lavatório que com os raios de sol do fim da tarde, parecia uma estrada de ouro de um conto de fadas…
A noite muito escura, custava a habituar. Ali não tinha no canto, a Nossa Senhora com a luzinha sempre acesa.
Era o breu profundo e negro povoado de ruídos estranhos.
Depois de sossegar as palpitações, começava a ouvir outros sons reconfortantes.
O pigarrear da Guigui, o ressonar pesado do avô que tinha o condão de deitar a cabeça e ficar instantaneamente a dormir, o virar leve da madrinha no colchão e sem dar por mais nada resvalava para o sono justo das crianças.
De manhã cedo, o avô entrava devagarinho no quarto e perguntava:
-Queres vir? Não faças barulho…
Meio ensonada, mas sem querer perder um minuto que fosse, lá me vestia à luz da pequena nesga de claridade que se filtrava pelas janelas e ia ter com o avô, que de binóculos e manta numa mão e dois pedaços de bolo roubados na cozinha na outra, me esperava junto à porta da despensa, por onde nos esgueirávamos sem fazer barulho.
Pouca luz havia…
Os pássaros faziam os seus voos matinais à cata de bicharada para os seus filhotes.
Abríamos o portão devagarinho e só um bocadinho para ele não chiar e íamos pelo caminho acima, em direção à casa do Sr. Mexia Barata. Antes do portão, contornávamos o monte de pedras a que eu chamava “castelo”e íamos por um carreirinho acima até à casa do Sr. Cavaca com as minhas pernas pequenas a darem muitos passinhos para acompanhar aquele Senhor grande e alto, de boina e sobretudo pretos.
Passávamos ao lado da casa ainda adormecida e finalmente chegávamos ao destino.
Um fragão grande e liso onde nos sentávamos aconchegados pela manta que o avô levara.
Enquanto comíamos a fatia de bolo e éramos invadidos por dezenas de aves de voo rasante que iam vinham sem cessar sobre as nossas cabeças, imitindo pios de aviso e cautela, o espetáculo tinha o seu início.
Longe, por detrás da última serra que o avô dizia ser em Espanha, um clarão de luz começava a surgir…
Não demorava muito tempo…primeiro envergonhado, o sol espreitava.
Depois começava a esticar os seus dedos de luz e lentamente punha a cabeça de fora e aí estava ele de cabelos dourados, a fazer brilhar as gotas do orvalho pousadas nas flores e ervas que ganhavam vida e cores vibrantes.
A Serra ficava colorida suavemente, com uma luz pálida que eu acreditava ser feita pelas fadas dos dias e das cores.
O avô pegava nos binóculos e varria o horizonte, de lado a lado, aumentando ou diminuindo o foco à medida do que queria ver…
– Então e eu? Perguntava impaciente.
– Calma, estou à procura!!!respondia o avô.
Passado um bocado punha os braços à minha volta, encaixava os binóculos nos meus olhos e dizia:
– Quando vires bem, diz.
E naqueles minutos o mundo crescia e entrava pelos meus olhos dentro.
O avô guiava as minhas mãos e lá estava o que ele queria mostrar; uma grande águia num voo planado à procura de algo que pudesse apanhar.
Ali nos demorávamos mais um pouco enquanto o avô mais uma vez me perguntava o nome das terras que víamos ao longe e que eu papagueava sem errar nenhuma, tantas as vezes que já as repetira antes.
-Vamos lá! dizia o avô, dando-me a mão para não escorregar…
E regressávamos pelo mesmo caminho tagarelando sobre águias, sobre lagartixas, sobre a vida.
Aquelas manhãs ficaram para sempre gravadas no meu coração.
No ano a seguir o avô partiu. Nunca mais tive companhia para ver o nascer do sol, mas passei a ir sózinha, sem binóculos, trilhando o mesmo caminho e o mesmo encantamento.
Já mais velha, quando conseguia um bocadinho de sossego dos quatro diabretes que foram aumentando a família, pegava num livro e ia para aquele local a que chamei Pedra dos Sonhos.
Sempre que estava lá sabia que o avô me espreitava por uma nesga do céu e sei que um dia, quando for a minha hora, a minha alma me transportará até ali para voar para ao pé dele e ele vai lá estar com uns binóculos e uma manta à minha espera.
Por enquanto, maravilho-me todos os anos com as lindas fotografias que me vão enviando da serra, vestida de amarelo e coroada de flores.
Quase que sinto o vento nas orelhas e o cheiro a giestas e carqueja…
Tenho muita saudades…
Tenho saudades do avô, da madrinha Luisa, da Guigui e da serra.
Uma filha da serra nunca devia ser afastada da sua mãe sem a poder visitar quando quiser…