Mês de Maria em 1967. Estava interna num Colégio no Porto.
Estávamos em Maio, Mês de Maria.
As alunas internas eram divididas por 4 Divisões. Cada Divisão tinha a sua sala de internato e tinha a sua imagem de Nossa Senhora.
Durante o mês de Abril, cada Divisão “vestia” a sua Nossa Senhora para que estivesse ainda mais bela no mês de maio.
Nesse ano, na aula de lavores da D.Elvira, bordámos um manto para “enfeitar”a Nossa linda Nossa Senhora.
Os dias já se esticavam e durante o mês de Maio o nosso recreio da noite era passado num sítio que agira já não existe:os castanheiros.
Era um pequeno recanto do recreio superior, onde existiam 2 enormes castanheiros (onde algumas de nós partimos braços , saltando para um dos galhos que “sorria para nós”…e depois nos deixava cair no chão… O malandro)
Por baixo desses castanheiros existia um aglomerado de arbustos, onde nesta altura se fazia uma gruta para colocar a Imagem de Nossa Senhora devidamente enfeitada com flores, recados e pedidos escritos em tirinhas de papel, desenhos alusivos aos pastorinhos e tudo o mais que passava pela nossa cabeça e passava no escrutínio das Madres .
Era aí que nos reuníamos depois do jantar, no final do recreio, para rezamos o terço.
Nesse ano, choveu muito no início do mês de Maio e como não podíamos fazer a oração no recreio, a linda imagem de Nossa Senhora do Rosário, com o Menino ao colo, o terço na mão e um lindo manto azul, foi colocada na nossa sala do internato da 4a divisão( constituída por alunas desde a 3a classe até ao 2o ano do liceu) num altar por cima do estrado, arranjado para o efeito!
Uma noite, depois de jantar, a Madre Lúcia Maria decidiu que o tempo seco do dia, já permitia que rezássemos o terço nos castanheiros.
Eu era das mais velhas( com muita pena minha…não das menos estouvadas, apesar do esforço constante…)assim, fui incumbida de ir à sala buscar a Imagem e levá-la para os castanheiros.
Toda inchada pela incumbência lá fui fazer o que me tinha sido pedido.
Ao chegar à sala, reparei que só chegava à Nossa Senhora em bicos de pés o que me obrigaria a ir procurar uma cadeira para lhe chegar melhor.
Olhando à minha volta, sabia que não havia nenhuma.
As nossas carteiras …não davam e a cadeira da Madre, tinha rodinhas!!!
Na minha cabeça de 11 anos, ir procurar outra cadeira, pedir chaves de salas, demoraria muito tempo, o que para a minha impaciência…era demais.
Assim, foi mesmo em cima da cadeira de rodinhas que me empoleirei e de onde desgraçadamente dei um grande tombo, de costas e para ainda maior desgraça agarrada ao manto bordado de Nossa Senhora que veio em ricochete cair no meu colo.
Com alívio, descobri que a Senhora e o Menino estavam inteirinhos , mas o belo e querido manto estava rasgado devido ao puxão!!!
Depois de breve estado catatónico, descobri que o rasgão era nas costas .
Puxei pela minha capacidade de desenrascanço, fui ao armário onde tínhamos uma caixinha de costura e com três pontos dados com a pressa, às três pancadas, remediei o melhor possível o desastre que me tinha acontecido!
Ainda meia tonta, com o sim- senhor a doer e o cotovelo quase em sangue e que mais tarde deu origem a uma grande negra ,lá transportei a Nossa querida Senhora para a sua gruta nos castanheiros.
No caminho ia rezando para que ninguém desse conta do manto!!!
Rezei as Avé Marias todas que é possível rezar em cerca de 5 minutos e entrei nos castanheiros empunhando a Imagem virada para a frente, com o disparate dos pontos bem encostado ao meu peito.
Escusado será dizer que já todas estavam à minha espera, impacientes para começar a oração.
Eu, muito senhora do meu nariz e da minha desdita, passei pelo meio de todas e fui colocar a Senhora na sua gruta de folhagem, sem me ter esquecido de esconder bem o rasgão do manto.
Quis Deus, ou Nossa Senhora que não chovesse mais no resto do mês, o que originou a que não fosse preciso mexer mais na Imagem.
Não fui mais incomodada , mesmo porque estava magoada “num braço” o que me tinha levado a que fosse tratada na enfermaria e andasse com o braço ao peito.
Todos os dias a preocupação da avaria do manto me perseguia e me angustiava, sabendo que um dia iria ser descoberta…
Nos meus inocentes 11 anos todas as noites, nas intenções especiais do Terço, incluía o pedido de um milagre que arranjasse “miraculosamente” o manto ou, como pressentisse que esse pedido não deveria entrar nos milagres, me desse coragem para confessar a minha falta que tanto me atormentava a consciência.
Chegou o dia 31, final do mês de Maria.
A celebração dessa noite era especial e no meio dos cânticos e das orações foi-nos pedido que fizéssemos um exame de consciência e cada uma de nós, em sinal de humildade, pedíssemos públicamente desculpa por uma das nossas faltas ou pecado se os tivéssemos.
O ambiente estava carregado de misticismo, a minha consciência estava carregada por mais de 15 dias de culpa escondida.
As minhas colegas começavam a confessar as suas faltas.
Então, no meio de picadelas com chupas aguçados, copianços de problemas de matemática ou pequenas mentiras, a minha boca abriu-se para dizer” peço desculpa pelo manto rasgado de Nossa Senhora” !
Se a confissão passou despercebida a muitas das minhas colegas, as orelhas da Madre Lúcia Maria eram um bom recetor, mesmo naquela amálgama de fungadelas própria de uma vivência tão participada daquela oração.
Os seus olhos cobertos por uns óculos com lentes verdes e grossas, olharam de lado para mim e eu soube naquele mesmo momento que “estava feita”.
Depois da celebração acabar, fomos todas para o dormitório, onde,à entrada, fazíamos uma fila e uma a uma beijávamos a mão da Madre e desejávamos Boa noite.
Quando chegou a mim, em vez da mão da Madre pousada na cabeça para me abençoar levei uma pancadinha com os nós dos dedos na cabeça e a frase tão temida por todas nós quando fazíamos asneiras:
– a menina espera aí, que temos de falar!
Foi uma explicação dolorosa e uma expiação vergonhosa.
Em primeiro lugar, teria que me ir confessar para ter o perdão do Menino Jesus.
Teria de explicar a todas as colegas porque é que o manto de Nossa Senhora estava rasgado, como é que eu tinha conseguido não contar o sucedido a ninguém e prometer ir ter com a D.Elvira para aprender a fazer uma barra bordada para disfarçar os pontos mal dados no manto.
E foi assim aquela metade do Mês de Maria que invariavelmente me vem à memória em todos os encerramentos do mês de Maria.
Resta-me dizer-vos que adorei estar no Colégio onde fui a aluna interna mais novinha.
E quanto ao manto, seja dita a verdade!
Depois da minha intervenção com a barra bordada… foi unânime que ficou muito mais bonito o que me leva a pensar que foi tudo obra de Nossa Senhora que não devia gostar muito do manto que antes tinha!!!
São memórias boas e que me fazem sempre sorrir.
Ainda ontem ao pôr flores frescas na jarrinha que tenho ao pé da minha Nossa Senhora, elas me vieram à memória…e sorri…. por isso as partilhei com vocês.