Negação/Paradoxo/Aceitação foram as três fases pelas quais Nelson Ferreira diz ter passado no testemunho que nos deixou na semana dedicada à Sensibilização da Doença Inflamatória do Intestino. Com colite ulcerosa vive com uma icapacidade de 72 por cento.
“Apesar de tanta atenção e gratidão, rejeito ser o “homem do saco”. Com todas as minhas forças irei sempre desassociar-me desse possível rótulo.”
“O Estado português decidiu, através de uma Junta Médica, reconhecer-me 72% de incapacidade. Para comprová-lo, tenho um atestado multiuso, e, graças a ele, tornei-me elegível para a Prestação Social de Inclusão.
A única vez que tirei proveito dele foi para furar uma fila de supermercado no dia 24 de dezembro. Antes disso, um dos representantes da EPAL da Loja do Cidadão das Laranjeiras defraudou-me as expectativas, remetendo-me para a senha não prioritária por
a) O atestado multiusos que tinha comigo ser uma fotocópia;
b) Dizer-me algo como “Você tem noção que parece bem e com saúde, certo?”
Porém, muito antes da supracitada golpada natalícia numa grande superfície de retalho, já havia interiorizado a mais importante máxima de vida que me foi incutida. Farei por ignorar que sou ostomizado e jamais equacionar que a ostomia é um fator eliminatório para qualquer ato a que me proponha no meu dia a dia. Estou em negação e é assim que me aceito, como Nelson Ferreira e nunca como Nelson Ferreira, "colite ulcerosa colostomia"
“Farei por ignorar que sou ostomizado e jamais equacionar que a ostomia é um fator eliminatório para qualquer ato a que me proponha no meu dia a dia.”
Mesmo que isso signifique atravessar uma praça de alimentação de um centro comercial, vazando fezes líquidas por uma brecha na concavidade emplacada onde se esconde o meu sobressaído estoma em alerta vermelho.
Leram bem, mas desenganem-se. Sinto a diferença e sei que jamais voltarei a ser restaurado às predefinições de fábrica. Mas, se equacionarmos a imprevisibilidade do livre- arbítrio, jamais teria outra atitude que rejeitar a minha condição crónica.
“o meu maior objetivo de vida, restem-me quantos anos me restarem, é ser incansável no levar a cabo de tudo o que me seja improvável ou inesperado.”
Ela, simplesmente, não me define. Não sou eu, a complexidade vasta que habito, sempre muito além de uma ligação intestinal "trocada" que desagua de maneira "insólita". Se pensar nisso, maravilho- me com o génio e ousadia da medicina moderna. Confio com fé de leigo, na ciência.
Sou fundamentalista para com o conhecimento, considerando que há apenas uma verdade, transversal a todos, que não é minha nem de ninguém, que vai além de qualquer vontade. Acredita, uma das coisas que mais me orgulho é de fingir que não se passa nada.
“Tenho muitas fantasias sobre o dia em que se refiram a mim como músico ostomizado ou escritor ostomizado. A se tornar real, terei falhado”
Não assumo de um para um sem que confie na pessoa por inteiro. Estou no armário durante maior parte do dia, com o peito cheio de orgulho.
Ninguém faz a menor ideia.
Não partilho a minha nudez sem que a outra pessoa saiba. Ela está chocada? Nunca me aconteceu. Tenho esse privilégio, nos nenhures da insanidade de querer que o meu maior objetivo de vida, restem-me quantos anos me restarem, é ser incansável no levar a cabo de tudo o que me seja improvável ou inesperado.
“O meu epitáfio jamais será definido por um saco de coleta de fezes.”
Sei que, enquanto procrastinador, aguarda-me um oceano de disciplina para conquistar seja o que for. Tenho muitas fantasias sobre o dia em que se refiram a mim como músico ostomizado ou escritor ostomizado.
A se tornar real, terei falhado, da mesma maneira que julgo que uma mulher se frustraria por ser, por exemplo, “uma grande mulher da Fotografia”, em vez de uma grande fotógrafa.
Aprendi a limpar o estoma e a trocar a placa e respetivo saco de ostomia com rigor cego. Aprendi a sentir os avisos da dor e a tomar medidas preventivas, inclusive nos meus movimentos, não vá uma torção intestinal comprometer-me novamente.
O rancor que senti, de início, pelo meu gastroenterologista, deu lugar a uma bela amizade breve e esporádica, com direito a confidências.
O homem acha, até hoje, que sou DJ. Conto, também, com o apoio de uma equipa pluridisciplinar para me manter vivo, desde pneumologistas de Santa Marta, a psiquiatras do Júlio, às mais atenciosas estomoterapeutas do Curry Cabral.
“Quando sentirem que a genética vos atraiçoou, lembrem-se que o Universo vos deve um redondo nada.”
Ainda assim, apesar de tanta atenção e gratidão, rejeito ser o "homem do saco".
Com todas as minhas forças irei sempre desassociar-me desse possível rótulo.
O melhor de tudo será estar em aberto, às claras, sem segredo, porém, invisível. Se consegui escapar a alcunha " o madeirense" na Faculdade (adivinharam: ser de uma determinada geografia não me define), também o meu epitáfio jamais será definido por um saco de coleta de fezes.
É um mantra maravilhoso para se repetir quando o Estado vos reconhece uma falha interna de órgãos.
Quando sentirem que a genética vos atraiçoou lembrem-se que o Universo vos deve um redondo nada.
Em suma, existem duas maneiras de vê-lo: ou somos um caso único e especial, daí que a vida seja um dom; ou somos uma insignificância cósmica, sem impacto algum e fadados ao pó.
Eu sei que o primeiro é bem possível, mas prefiro reger-me pela segunda.