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Quica Melo
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Quando for grande…

Memórias da Menina dos Olhos brilhantes
Covilhã 1963
Quando vejo imagens do nosso livro da 1ª classe , voo  sempre de volta aos bancos da escola da D. Gabriela Seco. Andei naquela escola dois anos no Jardim de infância, e 2 anos na escola primária.
Daqueles anos, lembro-me da Mimi, (Mª Alexandra Ferreira Correia) da Mª João Heleno que era minha colega de carteira, da Margarida Ferreira de Almeida, do Carlos Donas e do Paulo Pimentel.
Sempre fui uma aluna média para o bom,mas  com um comportamento sofrível, não porque fosse mal educada ou respontona mas sim porque não parava quieta na carteira  e a boca falava muito.
Era um dia ensolarado de inverno e a menina dos olhos brilhantes estava no recreio agarrada à sua cestinha de plástico cor de rosa onde a Guigui tinha metido na saquinha de guardanapo com um pintínho bordado, um quarto de pão partido ao meio, com queijo num lado e doce de mogango no outro. Ainda tinha num cantinho outro saquinho com 2 bolos de leite e uma banana!
Aquilo para um dez reis de gente como ela, era farnel que dava para uma semana, mas a Guigui pensava sempre que a criaturinha ia morrer de fome naquelas 3 horas de escola! E ai dela que voltasse com o farnel a meio.
Assim, nos recreios, escapulia-se sempre para aqueles assentos de pedra que havia no muro que dava para a rua.
Aí instalada, olhava para todos os lados para não ser surpreendida, e começava num bichanar incessante à cata de alguma criatura que a ajudasse a livrar-se de parte substancial do farnel.
Havia sempre um gatito que parecia esperar ansiosamente por aquele bichanar diário. Demorava sempre uns minutitos a chegar. Entrava pelo portão de cima, dava um salto do campo de futebol e aproximava-se da menina com interesse unicamente na lambarice, já que, por muito que a menina quisesse, só  permitia uma festa quando a menina lhe enchia a boca.
Lambuzava-se com mais de meio lanche, passava a grande língua pelos bigodes tremeluzentes, levantava a cauda e desaparecia tão misteriosamente como tinha aparecido.
A menina satisfeita por mais uma vez ter conseguido livrar-se da barrigada, corria para os baloiços para ver se ainda ia a tempo de uma voltinha e chegar com os pés aos ramos despidos das árvores, o que na altura era uma proeza.
Nesse dia depois do recreio, a menina foi surpreendida pela disciplina de leitura.
Normalmente estudava a lição em casa com a madrinha Luisa, mas ela tinha ido ao Porto e a menina não se sentia segura naquele dia.
Assim, logo que se sentou, deixou escorregar o rabiosque para o fundo do banco para ver se passava despercebida e a Gó não dava por ela.
O coração ainda mais se apertou quando deu conta que já não iam na lição do gato que até era fácil e tinham avançado para a outra dos homens de chapéu que ela nem sabia bem o que era, só sabia que era muito, mas muito difícil.
Do primeiro parágrafo livrou-se. Pensava que estaria livre daquele aperto. Com o nariz a espreitar por cima da secretária, foi com horror que viu a Gó aproximar-se de lado, espreitar e dizer :
-Quica, continua!
Meu Deus, que  Sta Teresinha a protegesse.
– Senta-te direita na carteira e olha para o livro! Repetia a Gó com aquela voz de quem podia mandar o que quisesse.
A menina já não conseguia pensar em mais  nada senão nas réguadas da Gó que doíam mesmo.
– Os cei…fei…ros cur… va…dos..
E depois a língua entramelou-se toda, os sons não saíam, e as lágrimas que nasciam sempre não se sabia onde, teimavam em cair em cascata.
A Mª João bem bichanava. “cei… fa… vam”… mas a aflição era muita.
A menina bem limpava os olhos com as palmas das mãos a cheirar a queijo, a banana e a bigodes de gato, mas parecia que o chafariz do recreio tinha mudado para a cara dela.
A Gó muito séria  fez a temida pergunta:
-Quica, a menina não estudou a lição?
A boca não se abria. Só os olhos e o nariz teimavam em não parar de deitar água.
– Quem não estuda fica burra!
Pronto, lá vinham as orelhas, a pior humilhação que havia e que a menina nunca tinha experimentado.
– A menina quer ficar burra?
Arrancado lá das profundezas do desespero a menina lá disse que não.
-Se a menina não quer ser burra, então o que quer ser?
E como não ouvisse resposta, continuou:
– Querem ver que o gato lhe comeu a língua!!!???
E os risinhos iam-se ouvindo na sala para pavor da menina que detestava que troçassem dela.
-Então? Falas ou quê? O que queres ser quando fores grande?
– Gato!
Eu juro que até hoje ainda não entendi porque é que dei aquela resposta. Não sei se no meio da aflição, olhei para a página do lado e vi o gato, se foi o gato do recreio, se foi o gato que come as línguas, ou se foi mesmo aquela  irreverência que às vezes crescia dentro de mim e me levava a fazer e a dizer coisas palermas
Fui levada por uma orelha, escada acima, para ir à D. Gabriela, com a minha querida  Maria Amélia(minha educadora que eu admirava e cuja lembrança me levou  mais tarde a escolher ser Educadora)  a correr atrás, a pedir à Gó que deixasse, que ia estudar comigo.
Bom, o final desta história é o final de qualquer história de falta de estudo de uma aluna na época de 60. Castigo, mais castigo e estudo.
O certo é que não me livrei da pretensão a gato que invariavelmente aparecia sempre que alguém na escola me queria fazer zangar.
Tenho contado muitas vezes esta história que me faz sempre sorrir e sabem uma coisa? Há dias, como o de hoje, de chuva e frio em que me apetecia mesmo…ser gato.

Créditos Imagem:

Segue News/Alexandra Ferreira

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