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Quica Melo
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Páscoa na Covilhã nos Anos 60

Dlin, dlão, dlin, dlão
Dlim, dlim, dlão…
Era assim que acordávamos na Covilhã, na manhã de domingo de Páscoa.
Os sinos começavam a tocar nas primeiras missas matinais, muito cedo algumas.
Quem acordava mais tarde era logo abençoado pelos sinos e envolvido em cheiros inebriantes que vinham da cozinha e passavam pelas fisguinhas das portas dos quartos e faziam coceguinhas nos nossos narizes.
O fogão a lenha já estava a bombar há muito tempo.
O horário das fadas do lar nesses dias era alargado.
Nos tachos já se preparava a calda para o arroz de miúdos, que deveria recocar tempo  suficiente para que o gosto fosse absorvido mais tarde pelo arroz.
As batatinhas estavam descascadas em água com umas pedrinhas de sal e os grelos já estavam cozidos e a escorrer na pia à espera que alguém os passasse na máquina.
A estrela do dia já estava a estalejar no forno, com o cheirinho do alecrim e da hortelã a escapar-se por entre a grelha do forno.
Nesse dia ninguém ajudava ninguém no pequeno almoço! A quem apetecia beber leite e comer pão, quando à nossa volta só víamos coisas boas para comer?
A colher e a taça da mousse de chocolate piscavam o olho… rapem-me, rapem-me…
O tacho  do creme para as farófias, saltitava de mão em mão com o salazar todo lambuzado…
O tacho do arroz doce, onde o leite escorria, docinho e a saber a limão… ia que nem ginjas…
Mas a rir mesmo, eram os fios de ovos que se escapavam da barriga da lampreia e que cada um de nós teimava em puxar só um fiozinho para provar.
Na sala estava tudo um esmero.
Um grande ramo de flores com muita gipsófila em cima do armário, anunciava a festa.
A toalha bordada com raminhos amarelos e cinza clarinhos com renda de crochet fininha à volta, brilhava debaixo do serviço” bom” de copos, dos pratos com as florzinhas azuis que eu adorava e do talher areado com cinza nos dias anteriores.
Espalhadas pela mesa havia tacinhas de vidro cheias de amêndoas, brancas, rosa e azuis, algumas amêndoas torradas e as outras, que iam do Porto, com forma de bébés, flores, cenouras ou ervilhas e tinham dentro um molho esquisito!!!
No armário do outro lado, sobre uma toalha branca, repousavam a travessa do arroz doce, o prato com o pudim de ovos que demorava quase 2 horas a bater, a taça com os maçapães, as taças das farófias e da mousse de chocolate, o pão doce do Tortosendo com aquele cheirinho caracteristico e o açucar a brilhar por cima, a travessa da risquinha Azul com a lampreia de ovos em forma de lua a crescer e olhos feitos de cereja em calda…
Depois de tudo inspecionado, lá íamos nós vestir a roupa nova (a melhor e mais especial do ano), calçar os sapatos de verniz e vestir o casaco para irmos à missa.
Lá ouvimos os dlim, dlões todos dos sinos todos das igrejas que nesse dia não se cansavam.
No fim, enquanto íamos para casa,  o padrinho ia a correr ao Sr Zé buscar as gargantas de freira que tinham sido acabadas de madrugada.
Na Páscoa não éramos tantos como no Natal. Mas éramos muitos!
Havia sempre conversas, risos, boa disposição e gargalhadas que embora fossem dadas baixinho eram uma alegria.
O cabrito era o rei da festa! Eu gostava daquela coisa branca que vinha entalada nas costelas, se chupava e tinha um sabor diferente de todo o resto!
O tempo à mesa nunca era como no Natal, tínhamos de ser mais rápidos porque a Visita Pascal ali no Calvário, era por volta das 4h.
Levantava-se a mesa, e deixávamos ficar os doces para o Compasso.
Juntavam-se uns cálices e as garrafas do vinho do Porto e da Madeira.
Entretanto também se preparava um jarro de limonada para quem não quisesse sair com as pernas a tremer.
Depressa se começava a ouvir ao longe a berraria  desgovernada da rapaziada que ia ao tostão.
Chegavam primeiro que o Sr. Padre.
Cada um de nós tinha 3 pacotes de moedas para deitar e nem mais um.
A madrinha tinha um cesto com rebuçados. Não deitava amêndoas porque “era um perigo para a saúde”.
O Sr Padre, o Sacristão, o rapaz da caldeirinha e o da cruz, lá conseguiu passar para dentro de casa, onde toda a família estava reunida na sala para receber a benção e sem medo de covides, beijar a cruz.
Normalmente bebiam a limonada para se dessedentarem e depois no fim, um pequeno golo de Porto, para ganhar ânimo para o resto da caminhada.
O Sacristão recebia o envelope com a congrua, os rapazinhos levavam os bolsos cheios de amêndoas e rebuçados e o Sr Abade, saía a dar Aleluias ou “porta-te bem” conforme as cabeças que encontrasse.
Entretanto já nós os mais novos, tínhamos ido para o muro do jardim com os nossos rolinhos de moedas embrulhados em papel pardo.
Só comecávamos a atirar quando o padrinho Bicho dava ordem.
Enquanto íamos atirando as moedas, as mãos esticavam-se todas no ar gritando:
– Aqui, aqui, deita para aqui!
– olha não apanhei nada!!!
-Cria-las? Apanhei-as  eu!!!
A minha madrinha Luisa ia esvaziando o cestinho dos rebuçados e tinha sempre no bolso, umas moedas guardadas para aqueles que de cara triste não tinham apanhado nenhuma. Nascia-lhes uma alma nova!
E a rapaziada lá se afastava a correr na ânsia de uma outra casa, e de umas outras tantas moedas.
Depois de lancharmos, alguns adultos e crianças metiam-se no carro para regressarem a casa… Porto, Figueira de Castelo Rodrigo, Lisboa.
São boas memórias de um tempo em que a maioria das coisas eram descomplicadas.
Hoje não sei como é o domingo de Páscoa na Covilhã, há muitos anos que não passo lá a Páscoa…mas tenho saudades.

Créditos Imagem:

Wesley Tingey in Unsplash Free Photos e DR

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