Antes dos 2 anos, poucas memórias tenho. Só uns flashes, aqui e ali que surgem por vezes em conversas com a madrinha Júlia.
Mas à medida que crescia, a capacidade de armazenar memórias foi aumentando e às vezes dou comigo a rir com algumas peripécias que tenho guardadas na cabeça.
Era um acontecimento anual, que eu só mais tarde consegui associar à preparação do Natal.
Como já vos tenho dito, a minha madrinha Júlia salvou-me de morrer no hospital, em 1956 quando ela tinha só 18 anos. Vivia com os pais na rua S. João de Deus, para onde me levou um dia, tinha eu 15 dias e estava quase a morrer com uma pneumonia.
A partir desse dia passei a fazer parte daquela Família que me acolheu com muito carinho e amor.
Ora, a madrinha Júlia no ano a seguir entrou para a Escola de Enfermagem aqui no Porto o que fez com que eu ficasse entregue aos cuidados dos pais dela, a minha madrinha Mª Luisa Barata Bicho e o meu padrinho José Ferreira Bicho.
Com essa deslocação para o Porto chegaram à familia uma quantidade de “novidades”que não havia na Covilhã.
Chegaram livros de pintar mágicos, aguarelas, cadernetas de casinhas e de bonecas e outras pequenas coisas com que a madrinha me mimava nos fins de semana que ia a casa.
Ora um dia, no início do mês de Dezembro numa ida da madrinha a casa, aconteceu uma coisa extraordinária.
Depois do almoço a madrinha chegou à sala com 1 bocado de papel castanho dos embrulhos e esticou-o no chão.
Eu não fazia ideia nenhuma para que seria aquele papel, mas achei que seria para embrulhar qualquer coisa para ela levar para o Porto.
Eu fui sempre uma menina bem educada, mas também muito curiosa o que originava que estivesse sempre a fazer perguntas e a querer saber os quês, os porquês e os para quês de tudo o que era novidade.
Ora, aquele papel no chão… era novidade. A Juju (como eu tratava a madrinha ) ia embrulhar alguma coisa, mas o quê?
Qual o meu espanto quando ela desaperta as minhas botas, me tira as meias e me põe em pé em cima do papel!
A minha cabeça se já estava a trabalhar a mil, agora quase que se podiam ver as minhoquices a dançar à volta dela! E o que é que aquela menina com uma imaginação fervilhante estava a pensar daquilo tudo?
Pois está claro! O Papel era de embrulho, eu estava descalça em cima do papel… a madrinha ia-me embrulhar e mandar para algum lado!!!
– Juju, vais-me embrulhar?
A madrinha sem reparar na minha aflição, respondeu :
– Não! Só preciso dos teus pés! Abre um bocadinho as pernas e estica bem os dedos dos pés!
Mau! pensava eu. Se eram só os pés, como é que a Juju ia fazer? Como é que ela ia levar só os pés se eles estavam colados às pernas?
A minha curiosidade misturada com alguma perplexidade perguntou:
– Ó Juju, como é que eu vou andar?
A madrinha olhou para mim não fazendo a mínima ideia do turbilhão que ia na minha cabeça.
– Ora, andas com as pernas, como sempre! E como eu estivesse inquieta ainda acrescentou muito séria:
– Agora está quieta com os pés senão tenho de os colar ao papel!
Pronto! Estava visto! Eram os pés que iam…!!!
Eu estava quieta de pé em cima do papel com os pés tão esticados que até pareciam pés de pato. Os meus olhos procuraram os da madrinha Jija para ver se ela também achava aquilo esquisito mas ela nem estava a olhar para mim. Estava a ajudar a Guigui a dobrar a toalha do almoço.
A madrinha Juju ajoelhou-se no chão ao pé de mim, meteu a mão no bolso e eu abri muito os olhos para ver o que ia acontecer!
Iria doer muito tirar-me os pés? Não devia doer porque a madrinha era enfermeira e não me deixava ter dores. Dava-me logo xarope.
Foi então que vi a madrinha tirar um lápis do bolso e começar a passar o lápis à volta do meu pé e fazia cóceguinhas.
-Está quietinha Quica. Estica os pés!
Eu estava a morrer de curiosidade!
– Ó Juju, porque é que estás a desenhar os meus pés?
A madrinha olhou para mim, sorriu e respondeu :
– É para ajudar o Menino Jesus!
E voltou a calçar-me as meias, as botas, e mandou-me ir brincar.
Mas eu fiquei ali a ver o que é que ela ia fazer com os meus pés.
Então vi-a dobrá-los e voltar a dobrá-los e depois meteu-os na carteira dela e levou-os para o Porto.
Depressa me esqueci do papel e dos pés e a vida continuou naquele inicio do mês de Dezembro de 1959.
Mas a história dos pés de papel não termina aqui e durou durante muitos anos.
É mais uma memória engraçada de que eu vou contar o fim daqui a uns dias.
É engraçado como uma coisa tão simples pode fazer tanta confusão na cabeça de una menina com muita imaginação.
Muitos beijinhos
Sejam muito felizes e ajudem as vossas crianças serem também felizes com coisas simples.
Depois descalçou-me.