Memórias da Menina dos olhos brilhantes , Covilhã 1961.
Ainda não tinha 6 anos, mas tinha uma curiosidade e uma determinação que não se encontravam assim em qualquer pingente daquela idade.
No meu quarto tinha desde sempre, uma santinha com um “alguidar” pequenino ao fundo.
No meu entender e muito bem, aquela coisa era para pôr água e água era brincadeira!
Várias vezes pedi à minha madrinha para a encher de água, mas os meus pedidos foram todos recusados com a explicação de que a água que se punha ali, não era para brincar!
Aconteceu que numa Quinta feira do Coração de Jesus, fui com a Guigui à Igreja de Santa Maria à devoção do Doce Coração de Jesus.
A devota Guigui, abriu a porta e logo ali estava uma coluna com vários “alguidares” enormes onde os dedos dela mergulharam e voltaram cheios de água com que fez uma cruz na testa e me fez uma a mim!
A seguir, vieram as palavras mágicas:
– ” vês Quica, esta água é que serve para a tua santinha, porque é água benta.”
Ao princípio ainda estranhei que a água fosse da Benta, mas depois lembrei-me que a Benta, amiga da Guigui e a casa de quem ia às vezes ao domingo levar o almanaque da Sta Zita, tinha um tanque muito grande sempre cheio de água.
Aos poucos fui percebendo que aquela água era uma água da Benta especial, porque todas as pessoas que entravam, mentiam lá as mãos e benziam-se com ela.
Fiquei ali a pensar naquilo durante um bocado enquanto me virava para trás cada vez que uma pessoa entrava para ver se também ia molhar as mãos na água da Benta.
A rebentar de curiosidade, entre Pais Nossos e Avés Marias, lá consegui perguntar à Guigui porque é que a Benta dava água a toda a gente.
A Guigui que era uma alma séria e devota, lá me explicou com muita dignidade que não era água da Benta, mas sim água benta que nos tira os pecados;
Que quando entramos numa igreja devemos por sempre água benta para nos tirar os pecados.
Foi uma tarde de grande aprendizagem!
Primeiro: havia uma água que era benta e não era da Benta.
Segundo: a Guigui tinha pecados porque tinha que ir à água e a madrinha não tinha pecados, porque ela entrava pela porta do meio e lá não havia água para os pecados.
Terceiro: era aquela água que se punha na santinha do meu quarto e não água da torneira que não tirava pecados.
Tive uma semana de grandes e profundos pensamentos, de onde saíram grandes resoluções, a principal das quais era a de arranjar água que tira os pecados para a minha santinha.
Só não sabia era como!
Ora calhou que naquela semana uma das visitas da minha madrinha me levou um conjunto de panelas de lata para eu brincar.
Lá entre as panelas, estava uma ferrada de leite com uma tampa que tapava muito bem.
Ó ferrada que a Quica viu!!! Ali estava o meio de transporte para a água dos pecados!
O domingo aproximava-se e a Quica já tinha tudo bem pensado preparado.
Era costume levar à missa um vestido de xadrez com um casaquinho com uns bolsos ótimos para guardar rebuçados, portanto, o ideal para esconder o meu segredo.
Assim foi que me vi a caminho da Igreja, com a ferrada no bolso, partilhando espaço com a caixinha do terço que invariavelmente acabava a servir de colar e o lencinho branco bordado com uns bonequinhos às cores.
Chegadas à Igreja, a divina providência, como acontece quase sempre nestes casos, encarregou-se de me facilitar a tarefa.
Encontrámos à porta a Ti Conceição Quintela que quis entrar pela porta do lado para ir à água dos pecados.
A igreja estava muito, muito, cheia.
Assim, tivemos de nos encaixar num banco mesmo ao fundo da Igreja, bem próximo dos “alguidares” da água dos pecados.
Fui analisando a situação e para meu grande contentamento e descanso vi que o nosso banco acabava mesmo por baixo do “alguidar” da água dos pecados.
Na altura em que o Sr padre falava e estava toda a gente sentada e eu estendia o meu lindo lenço e enfiava o terço pela cabeça, fui-me esgueirando pelo banco fora, enquanto a minha madrinha distraída do que o sr. Padre dizia, estava entretida numa grande conversa baixinho com a Ti Conceição.
Peguei na ferrada, enfiei-a na água, molhei as mangas e enchi-a de água.
Levantei a cabeça feliz com a minha proeza e quando olho para ver se ninguém tinha visto, dou com os olhos, nos olhos do Sr. Padre Zé que do alto do altar via tudo enquanto fazia o seu sermão para uma assistência mais ou menos distraída!
Ele vira-me! Ali de joelhos em cima do banco era um alvo fácil!
Pus a tampa na ferrada e meti-a no bolso longe dos olhos de quem mais pudesse ver.
As coisas até estavam a correr bem até à altura em que todos se ajoelhavam e que eu distraída não tinha feito.
A minha madrinha estica o braço, agarra-me o casaco e puxa-me para baixo.
Ai minha vida, minha santinha da água benta!!! Comecei a sentir-me molhada e com a aflição apertei o bolso do casaco ao vestido para ver se estancava aquele desastre.
Quando voltei a pôr-me a pé uma grande roseta molhada aparecia no meu vestido, mesmo à frente, onde toda a gente via.
A Ti Conceição olhou para mim com os olhos muito sérios e no meio do Pai Nosso disse-me entre dentes:
– A menina não tem vergonha? Já tem 5 anos, não tem idade de fazer chichi nas calças!
Foi assim que me vi com um chichi bento no vestido, enquanto no fim da missa esperávamos pelo Sr. Padre para marcar uma missa.
Feitos os cumprimentos, vem a pregunta da praxe:
-Então Quica, tens-te portado bem?
Enquanto eu baixava a cabeça à espera de um raspanete a minha madrinha responde por mim:
– Ai ela é uma santinha… uma santinha de pau carunchoso! Foi muito feia que fez chichi nas calças.
Era agora que ele ia dizer… O Sr Padre Zé abriu a boca e de lá saiu:
– De pau carunchoso não… é uma santinha de água benta!
E mais não disse.
Perante o olhar admirado da minha madrinha, piscou-me o olho e fez-me uma festa na cabeça.
Passados uns anos ainda nos rimos dessa missa tão atribulada e molhada.
Sempre que nas férias ia à missa em Santa Maria, invariavelmente era acolhida pela saudação :
– Olha a santinha da água benta!
O Sr. Padre Zé, a minha madrinha, a ti Conceição, a Guigui, a D. Benta já cá não estão… mas a santinha da água benta continuou sempre comigo. Acompanha-me em todos os quartos, sempre ao lado da minha cama. São muitas as vezes em que à noite me vem um sorriso aos lábios quando os meus olhos pousam nela.
Ah! A santinha…É a Rainha Santa Isabel e nas minhas mãos já tem 67 anos, mas já era da minha madrinha Julia quando era pequenina e ela pensa que já tinha vindo de casa do avô. Portanto deve ter muito perto de 100 anos se não tiver mais…
Muitos beijinhos e sejam felizes