Há muito, muito tempo, era eu uma menina de 7 anos, tinha um avô que era quase como um Merlin da Estrela.
Para uma menina pequena, aquele Merlin parecia que sabia tudo. Era um mágico que a levava a mundos encantados…
Nunca lhe tinha visto o bordão, ou qualquer varinha mágica e muito menos um chapéu pontiagudo por cima de cabelos compridos…
Mas tinha uma boina preta que parecia ter vida quando ele a punha na cabeça enfiada até às grossas sobrancelhas que pareciam ser as asas de uma águia que morava no seu nariz!
Assim era o avô Barata.
Num dia de tarde, no final do mês de Junho, depois da sesta obrigatória, desceu as escadas, entrou em casa da minha madrinha e sem dar grande atenção ao que dizia a Guigui, mandou-me vestir umas calças, calçar as botas, por um chapéu na cabeça e pegar num casaco.
Foi à dispensa, espreitou nas latas e lá encontrou um resto de bolos de leite que embrulhou num guardanapo, dando um nó como se fosse uma trouxa de roupa!
-tráz o teu copo, disse o avô
– Mas ó Senhor Barata, onde leva a menina? Perguntou a Guigui. Não gosto muito que a leve quando a minha senhora não está cá!
– vamos dar um passeio! Respondeu o avô. Faz um bom jantar que vamos chegar cheios de fome.
– Não vai para a serra, pois não? Prometeu à minha Senhora que não ia para a serra. Olhe o seu coração… não se meta em trabalhos…a menina é pequena… argumentava a Guigui.
De nada valeram os pedidos.
O avô deu-me a mão, meteu-me no carro azul clarinho, arrumou os bolos na prateleira do tablier, abriu as janela do carro e aí fomos nós.
De joelhos no banco, com a cabeça a espreitar no vidro meio aberto, começaram as infindáveis perguntas
– avô, onde vamos? Este não é o caminho da serra, vamos à quinta?
– senta-te caladinha e sossegada. Disse o avô.
Eu olhava com muita atenção para as casas a passarem.
Sabia que não íamos para a serra e para a quinta também não, porque para ir para a quinta não se passava pela fábrica do Sr. Conde nem pela ponte do combóio que fazia barulho.
As casas desapareceram e as arvores eram umas atrás de outras, a fazerem aquele barulho zzzzec… zzzzec… zzzzec a passarem pela janela do carro.
Passámos pela entrada da quinta da Ti Xã no Teixoso e depressa deixei de saber onde estávamos.
– Vamos para o Porto avô?
Eu já tinha ido ao Porto no ano anterior, depois da madrinha Júlia ter casado, mas tinha levado uma mala com roupa e agora só tínhamos bolos de leite e o cantil castanho do avô.
– Não vamos para o Porto, riu o avô. Vamos a um sítio de que tu vais gostar muito.
– Vou gostar porquê? O que tem esse sítio?
– Eu também não sei. Nunca lá fui, disse o avô, mas acho que também vou gostar muito! Agora sossega e senta-te direitinha que a estrada vai ter curvas!
Eu estava habituada a estradas com curvas, nem ficava mal disposta como a Guigui, mas ficava cansada, porque queria ver tudo…
Encostei-me para trás e acordei com o avô a fazer-me cócegas no nariz.
– anda lá, princesa dos olhos grandes., vamos embora! Disse o avô.
Olhei à volta e estávamos numa estrada de terra, ao pé de umas casas.
De uma dessas casas, saiu um senhor com roupa de guarda das florestas. O avô foi ter com esse senhor, deu-lhe uma mãozada e uma garrafa que tinha saído não sei de onde e ficou a falar com ele.
Eu já estava entretida a juntar pedrinhas e bugalhos sem ligar nada ao que diziam.
Naquele instante chegou um jipe com outro senhor que também cumprimentou o avô e foi embora.
Depois o primeiro guarda levou-nos no jipe que parecia o dos bombeiros do padrinho Bicho, mas era branco, todo cheio de pó e lá fomos aos solavancos por um caminho que era muito estreitinho, com muitas pedras e pó.
Eu ia ao colo do avô porque os bancos atrás eram virados e eu podia cair.
Ao colo do avô via tudo muito bem.
O Senhor Guarda parou o jipe num larguinho ao pé de uma torre. Saímos, o avô deu-me a mão, com o cantil a tiracolo e a trouxa dos bolos amarrada ao cantil e aí fomos nós com o copo a encher-me o bolso.
O avô levou-me com muito cuidado ao cimo da casa estreita.
Segurou-me bem e pude ver a serra a toda a volta!
Sim, era a serra porque podia ver ao longe o Cântaro magro, que conhecia muito bem, mas não conhecia o resto que via.
-onde estamos avô?
-ali ao fundo aquelas casinhas é Manteigas! Disse o avô.
Eu lembrava-me de Manteigas.
Já tinha ido lá com o avô provar aquela água que saía numa fonte ao pé da estrada e cheirava e sabia muito mal… (belhéque…) e sabia que o avô tinha um amigo muito amigo que era dono de um restaurante que era meio redondo numa curva.
Depois descemos com cuidado e começámos a andar.
Eu não via nada diferente. Via muitas árvores e ouvia o vento a assobiar devagarinho e as folhas a abanar…
Então o caminho fez uma curva, andamos uns passos (eu muitos passos, porque as minhas pernas eram pequenas ) e depois…
Depois parecia que tínhamos um sol verde em cima de nós!!!
Estávamos num mundo mágico!
Árvores fininhas, com um tronco redondinho, liso e cinzento cresciam à nossa volta. As folhas não tapavam o sol como acontecia com muitas árvores que eu conhecia. Eram pequeninas, meio redondinhas e muito brilhantes.
O Sr. Guarda disse que vinha já e eu e o avô ficámos ali no meio daquelas árvores fininhas e brilhantes.
Havia muitas pedras grandes no meio das árvores, o avô sentou-se no chão encostado a uma pedra e eu sentei-me ao lado dele.
Então o avô deu-me água a beber, abriu a trouxa dos bolos de leite para comermos e começou a ensinar-me coisas sobre aquelas árvores brilhantes.
Disse-me que se chamavam Faias e que ainda eram como eu, meninas pequenas.
Que tinha sido o pai do senhor que nos trouxe no jipe e outros amigos que, há muitos anos, ainda eu não tinha nascido, as tinham plantado.
– avô, então as Faias já deviam ser velhinhas como tu, disse eu que achava que tudo o que tivesse nascido antes de mim, já devia ser velho…
O avô voltou a rir e explicou que aquelas árvores iam crescer muuuuito até 30 ou 40 metros e que iam viver muitos, muitos, anos…tantos, que quando os meus netos tivessem filhos ainda lá iam estar porque podiam viver 200 ou 250 anos e que era por isso que os ingleses diziam que a Faia era a rainha das árvores, a árvore da sabedoria, sagrada, protetora de todos os que nela procuram abrigo.
Eu ouvia tudo com muita atenção. Algumas coisas eu não percebia muito bem, mas o avô parecia mesmo um mágico a contar histórias.
Disse-me também que uma Faia como vive muitos anos, guarda muitos segredos e toma conta de muitos ninhos, de muitos ovinhos de passarinhos e de muitos animais que moram no seu tronco e nos seus ramos.
Que dá umas castanhas pequeninas que muitos animais comem e que há muitos, muitos anos que os feiticeiros sabem que as suas folhas curam doenças e que bocadinhos dos seus troncos fininhos podem salvar a vida de muitas pessoas.
Explicou também que no Outono, as Faias “comiam” o sol e as folhas ficavam todas amarelas e castanhas antes de irem dormir no chão do bosque
Eu estava sentada ao lado do avô com a cabeça encostada no seu braço e os olhos postos naquelas folhas verdinhas que pareciam dançar por cima das nossas cabeças sem conseguir compreender como é que as árvores comem o sol…
– Sabes uma coisa? As pessoas que moram na Irlanda acham que as faias são as árvores onde moram as fadas, os duendes e os gnomos. Continuou o avô.
– A sério avô? Perguntei eu levantando logo a cabeça e começando a olhar para todo o lado.
O avô sorriu com as sobrancelhas e continuou:
– No dia em chega o Verão e no dia em que chega o Inverno as fadas e os feiticeiros dançam à volta das Faias e dão-lhes abraços a pedir para lhes trazer felicidade. É por isso que a Faia é também a árvore da felicidade.
E dizendo isto, deu-me a mão, sacudiu as migalhas que tinham caído na camisa e pegou no ultimo bolinho de leite.
Eu pensei que ele ia comer o bolo mas ele partiu-o ao meio e disse:
– escolhe uma árvore e põe este bocadinho de bolo ao pé do tronco, depois dá-lhe um abraço e pede à fada das faias para te proteger e fazer muito feliz.
Eu assim fiz. Exatamente como o avô disse.
Pelo canto do olho vi se o avô fazia a mesma coisa. Ele pôs a metadinha do bolo no chão e depois pôs uma mão no tronco fininho da árvore e encostou a cabeça.
-avô, não dás um abraço à faia?
O avô olhou para mim, deu uma gargalhada baixinho e com os olhos muito brilhantes disse:
-Eu já sou muito feliz! Disse o avô.
-Avô, no Outono mostras-me como as faias comem o sol?…
Nunca mais voltei ao bosque das faias com o avô.
Só mais tarde pensei que o avô se calhar não tinha pedido à fada das faias para o proteger…
Partiu para o mundo dos feiticeiros do céu, no verão a seguir, vai fazer amanhã 58 anos. Tinha 77 anos só mais 9 do que eu tenho agora.
Tinha sido tão bom se tivesse tido o avô mais tempo comigo…
Mas acho que lá em cima precisavam dele para espalhar felicidade…
Só voltei ao bosque das Faias em 1982. Tinham passado 19 anos!
Parecia uma tontinha a olhar para aquelas árvores grandes, altas e belas.
Não consegui encontrar a árvore a que tinha dado o abraço. Mas de mãos dadas à minha filha, abraçámos uma árvore e pedimos felicidade e protecção às fadas e deixámos uma bolacha de água e sal junto ao tronco.
Depois, sozinha, enquanto a Ana saltitava por entre o arvoredo, encostei a cabeça e a mão a uma faia e senti o pulsar da Vida…um leve sopro abanou a folhagem e pareceu-me ver um feiticeiro de boina preta na cabeça…
“Ó avô… porque não pediste também proteção?”
Talvez agora compreendam porque andei tão triste, preocupada e zangada nos últimos dias…
O bosque das faias faz parte das minhas memórias vividas com o avô que fez questão de mo mostrar, de falar dele e de construir histórias que também me tornassem parte dele.
Não sei se houve mais avôs ou pais que fizessem o mesmo, mas eu sinto-me uma privilegiada por ter sido contemplada com esses momentos de paz, de descoberta, de amor e de magia…
Um beijo para o céu das faias, onde o avô de certeza andou muito preocupado e triste estes últimos dias…
Avô, um dia vamos encontrar-nos para vermos as faias a comer o sol…
Adoro-te
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