Memórias da Covilhã
Ontem foi um dia estranho e bastante complicado para mim.
Acordei com um sol radioso que entrava pelas janelas da minha sala e enchia tudo de calor, de cor e de vida.
De repente à hora de almoço, um monstro de nuvens escuras entrou-me pela casa dentro e roubou-me a luz…
Nem almocei.
A minha alma migrou para um buraco que tenho dentro de mim e que às vezes aparece sem eu saber de onde vem.
Enrolei-me no sofá, tapei-me com uma manta e deixei-me ir…
Fui para onde costumo ir quando preciso de ganhar forças…
vi-me a a chegar ao cimo da ladeira do Calvário, com as botas e as calças todas molhadas, segurando o meu guarda chuva vermelho que apertava teimosamente contra mim para que não voasse naquele sítio onde o vento vinha de 4 lugares, qual deles o mais assustador.
Chegar a casa naquelas tardes é a definição mais autêntica que eu conheço de “aconchego”.
Mal a porta abria, toda eu aquecia.
Estava a meter o guarda chuva no bengaleiro de esmalte azulado e já o cheiro me chegava.
Vinha pelas frestas da porta do hall entreaberta, insinuava-se naquele espaço e abraçava-me numa onda de aconchego.
Cheirava a petróleo!
Ainda hoje adoro o cheiro a petróleo, que mexe dentro de mim segredando, calor, bem estar, casa!
Nessa altura não havia aquecimentos centrais, nem sequer um aquecedor em cada divisão.
Tínhamos nos quartos aquecedores a óleo, daqueles que tinham uma gavetinha para por água quando se ligavam e onde se punham os pijamas e as camisolas interiores a aquecer e se metiam os lençóis de banho no meio dos tubos para ficarem quentinhos.
Na sala de estar, tínhamos uma braseira elétrica e na salinha pequena, onde passávamos a maior parte do tempo, tínhamos uma braseira de brasas.
E depois havia o aquecedor a petróleo, o bicho com boca de fogo!
Normalmente estava a meio do corredor e ia viajando durante o dia.
Antes do almoço era posto na sala de jantar, à hora do banho ia para o quarto de banho e à hora de jantar voltava para a sala.
Quem tomava conta do bicho era a Guigui, que percebia da engenhoca e de Bichos
Era ela que enchia o depósito de petróleo, era ela que desentupia os bicos e era ela que normalmente o ligava.
Mas era um aquecedor um pouco dado a “achaques”. De vez em quando a chama começava a tremer, deixava de ser azul e pronto… fugia!
A madrinha Luisa dizia com alguma graça que estava “a amarrar o burrinho” como as criancinhas.
Às vezes ninguém o conseguia fazer voltar à vida até à hora em que o padrinho Bicho chegava a casa, e tinha uma “conversa séria” de Bicho para bicho com o teimoso animal de boca quente e azul.
Eu era uma observadora habitual daqueles segredos que um dia me viriam a dar jeito, quando na sua viagem final, o bicho veio para o Porto.
O padrinho Bicho abria a grade, tirava o reservatório para fora e depois com o desandador, dava pequenas pancadinhas amigáveis na bocarra do bicho.
E por artes mágicas, (ainda hoje não entendo muito bem a finalidade das batidas) o bicho voltava a deitar chamas azuis e quentes pela bocarra de lata.
Nunca mais houve aquecedor como aquele.
Como disse, quando os padrinhos vieram para o Porto ele veio na bagagem e durante anos cumpriu o seu papel de bicho aquecedor.
Depois, acho que ficou como eu, cheio de saudades do ar frio da Covilhã, do vento a cheirar a neve e das mãos de quem lhe dava vida.
E pronto, aqui estou eu cheia de saudades de um aquecedor de petróleo que aquecia o corpo, o coração e a alma.
Ontem foi um dia em que a saudade doeu…
há dias assim em que a solidão se refugia na memória do aconchego da casa da Covilhã.
Um beijinho muito grande
Sejam felizes