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Quica Melo
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Lobos, medos e serranias

Memórias da menina dos olhos brilhantes.
Uma recordação tão velhinha quanto eu, de lobos, serranias e medos
Na casa das  Penhas da Saúde, tínhamos alguns candeeiros de petróleo e tínhamos dois petromax principalmente para o exterior  ou para quando estivessemos muitos na sala e faltasse a luz.
Uma noite, há cerca de 63 anos, depois de um dia lindíssimo, nas férias do carnaval, veio uma tempestade de que ainda hoje me lembro.
Na lareira ardia um grande tronco, espalhando luz e calor.
Os fusíveis, daqueles com dois pernos, onde se enrolava o fio de um lado ao outro, não aguentavam as descargas elétricas da trovoada.
Só havia luz na sala, o resto da casa, qual fantasma, estava embrulhada numa escuridão que se colava à minha pele de menina de 4 anos feitos há poucos dias.
Só estávamos 4 em casa. O avô Barata, a  minha madrinha Luisa, a Guigui  e claro…eu e o Bobi, que era tão medroso como eu .
Eu estava enrolada no colo do avô que me contava histórias das suas viagens, o que me distraía da borrasca.
Foi então que perto, muito perto mesmo, se  começaram a ouvir os uivos dos lobos. (era pleno inverno, altura da fome dos lobos).
Rapidamente, os uivos foram-se aproximando devido à escuridão em que as Penhas estavam imersas (nem o Hotel doSr Vaz Serra  tinha luz)…
Algo farejava na porta da despensa. O cheiro dos alimentos ali armazenados, tinha atraído os lobos.
O avô só dizia:
– calma Quica, os lobos não entram em casas de tijolos!!!
Mas eu estava sempre a ver quando é que um descia pela chaminé…
Passado um pedaço, que me pareceram horas, e sempre com os uivos debaixo de nossa casa, o avô levantou-se de repente e disse:
– Basta Maria Luísa! Coitados dos animais!!!
Coitados dos animais??? perguntava eu para mim mesma. Eu tenho muito medo!!!
Então o avô, acendeu um candeeiro e deu-me a mão.
Foi à despensa pegou num dos frangos  que estava num alguidar já temperado para o outro dia, embrulhou-o num  jornal  e comigo pela mão subiu as escadas para o sótão!
(de mal a pior! eu detestava o sótão à noite, porque tinha muito pouca luz e agora ia ao sótão com uma candeia e com lobos a uivar)
Lembro-me de apertar muito a mão do avô, que era muito grande e tenha pêlos, mas não eram de lobo!
Abriu a janela de um dos quartos do sótão, pousou a candeia em cima de uma cómoda que estava perto, pegou em mim ao colo e disse:
– Olha Quica, os lobos são como todos os animais.
Os cães ladram se têm fome.
Os gatos miam, as galinhas picam no chão e os lobos…uivam!
Devem ter lobos ainda pequenos para alimentar.
Pegou no jornal onde tinha o frango e atirou-o pela janela.
Ouviu-se um restolhar e o barulho de ossos a serem trincados.
Ficámos ali um bocado com o vento a a soprar nas nossas caras e cabelos e o medo a rodear quem não sabia o que havia pensar dos lobos que comiam a avó do capuchinho vermelho e andavam na serra cheios de fome!
Descemos as escadas, já sem barulho. Os lobos tinham-se  ido embora.
Nessa noite, dormi na cama da minha madrinha, mal assimilando ainda o que se tinha passado.
Claro que ao outro dia, não sobrou frango para o jantar…estava na barriga dos lobos!
Tive algumas experiências na serra  com  lobos e com o avô. Essas vivências fazem com que hoje eu seja uma grande defensora dos lobos.
Ah! Uns dias mais tarde, quando descíamos das Penhas para a Covilhã, já de noitinha porque tínhamos ido à festa do carnaval na Colónia de Férias, algo brilhou encadeado pelas luzes dos faróis  do carro.
– Olha Quica, vai ali o lobo a quem demos de comer!
Um lobo estava parado no meio da estrada, meio cego com as luzes.
O avô desligou os faróis e quando os ligou, já lá não estava nada!
Agora já não oiço lobos, porque nem todos descobriram que bastava dar-lhes de comer.
Mas sempre que vou à serra e me sento no muro da  “casa com cóceguinhas aos pés “quase sempre me lembro daquele episódio. Olho para a janela do quarto do sótão e a minha alma e o meu coração sorriem…
Obrigada avô por me teres ensinado a gostar e a defender os lobos…
Ainda um dia havemos de voltar a ouvir os lobos debaixo de um céu estrelado…
Adoro-te avô.

Créditos Imagem:

Thomas Bonometti e Andrew Ly – Unsplash Free Photos – DR

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