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Monteiro Cardita
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Glória aos vencedores e honra aos vencidos

A simbólica é uma dimensão da vida que tento captar a todo o instante no que está à vista de todos e também no que se esconde de toda a gente, para dessa forma penetrar mais fundo na raiz dos objetos e assim os compreender melhor o verdadeiro significado das coisas.

Mal descortino um qualquer símbolo inscrito na pedra, na madeira, em tecido, onde quer que seja, logo tento descobrir o seu valor associado e a razão de ali se apresentar.

Por tanta curiosidade me despertarem quase me tornei um estudioso da matéria e hoje em dia dou por mim a tentar decifrar a razão de ser de cada marca, sinal ou traço aposto no contexto da representação simbólica, pretendendo decifrar qual a missão que querem transmitir aos sentidos.

Neste labor, pousaram outro dia os meus olhos na heráldica do concelho onde nasci e não pude deixar de sentir um enorme arrepio pela circunstância de nele se encontrar retratada com violência a glória dos vencedores sem a atenção da honra que se deve prestar os vencidos.

No escudo do Município de Santiago do Cacém surge ao centro a representação de um cavaleiro da militar de Ordem de Santiago vestindo uma cota de malha, montando num cavalo ornado a prata com arreios vermelhos, empunhando na mão direita uma espada vitoriosa e na esquerda um escudo amendoado de prata com armas da Cruz de Santiago.

Já sob as patas dianteiras do cavalo do cavaleiro monge  está exposta a figura de um mouro derrotado, caída por terra, simbolicamente morto, segurando uma inútil adaga e vestindo um albornoz  branco com turbante igualmente branco a ornar-lhe a cabeça.

 

Enquanto observo este quadro cogito que a história é sempre narrada pelos vencedores, que não raras a contam à sua maneira de acordo com a forma que considerem ser a mais favorável na afirmação da aparência que melhor lhes convém.

Porém, volvidos tantos séculos da reconquista cristã da Península Ibérica e do consequente fim do El Andaluz, creio que este tipo de heráldica pode revelar-se politicamente incorreta, ferir suscetibilidades, abrir feridas e alimentar novos ódios sem qualquer necessidade.

Imagine-se que o Concelho de Santiago do Cacém pretendia geminar-se com uma qualquer cidade, por exemplo, de um país do norte de África, ou privilegiar relações com o Magrebe de onde estamos atualmente a importar mão de obra, ou até mesmo apresentar sentimentos de solidariedade em razão de qualquer acontecimento funesto que possa ocorrer no mundo árabe e o fazia recorrendo a cartas ou assinaturas eletrónicas timbradas com tão vincada afirmação de memória histórica.

Atualmente não é nem pode ser de bom tom nem corresponde ao conceito de boa vizinhança que os vencidos sejam humilhados desta forma tão acintosa, o que só pode acirrar ânimos entre vizinhos.

A glória dos vencedores tem no seu reverso a dignidade como se devem tratar os vencidos.

E, neste caso em particular, não é difícil imaginar que a representação de um cavaleiro da Ordem de Santiago ou apenas a sua muito particular cruz desempenharia a mesma função heráldica sem ninguém ofender e sem criar dificuldades diplomáticas nas relações entre nações, entre cidades ou entre os cidadãos que do lado de lá do Mediterrâneo podem olhar constrangidos para este nosso brasão com uma grave ofensa merecedora de reparações.

De modo a que a convivência não azede, particularmente por estes dias em que foi executada a fatah que pairava sobre a cabeça de Salman Rushdie, seria um gesto magnânimo que se revisitasse a heráldica por forma a que todos se sentisem representados e ninguém pudesses argumentar arrogância, sobranceria ou superioridade civilizacional.

 

Créditos Imagem:

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