É sempre com enorme alegria que se recebem as primeiras neves do ano, principalmente na cidade. Apesar de anunciada na cor plúmbea do céu, nas aplicações meteorológicas dos telefones inteligentes e nos noticiários da comunicação social, vê-la cair branca em flocos confere um renovado encanto à paisagem por mais feia que ela seja.
Às vezes nem é um grande nevão, mas apenas uns farripos esbranquiçados que mal se distinguem dos pingos de água da chuva, o suficiente para alegrar os rostos gelados daqueles que nessas ocasiões se encontram no exterior e daqueles que estando em casa ou no local de trabalho deixam cair para si ou declaram em voz alta para os colegas “olha, começou a nevar”.
E logo, por um momento, tudo pára como por magia, e é magia autêntica o espetáculo que a natureza nos oferece nesse alvo derramar de água em estado sólido caída das alturas, o qual mal chega ao chão tanto pode tornar ao estado liquido sem mais delongas como permanecer sólido por horas ou dia, esculpindo verdadeiras peças de arte de altíssima qualidade.
Outras vezes, porém, começa de mansinho, ao estilo de bate leve, levemente do poema da neve, e depois chega com toda a força, irrompe sem pedir licença, acumulando-se por camadas macias e leves em todas as superfícies em que pousa.
Linda de pasmar ao olhar de quem a observa no aconchego do lar. Já para quem a apanha no meio do vendaval a descoberto sem proteção apropriada, a beleza pode tornar-se muito agreste, mesmo agressiva, se lhe dá a fúria rasga-nos a pele e queima tecidos, especialmente se for tocada a vento.
Depois, segue-se a ressaca dos nevões. Alguns dias passados vem o regurgitar, a branca e pura neve transforma-se numa capa preta que se acumula perigosamente nos passeios gelados. Quantos tombos e quantos malhos não provocou já nos mais incautos, alguns com passagens pelo hospital em face da gravidade da queda.
É preciso, pois, nessa fase caminhar com todo o cuidado pensando que se está a pisar ovos e não convém que se partam, que é como quem diz não quero nada escorregar e partir-me todo neste gelo nojento.
Aí entra o sal. Sal e gelo odeiam-se de morte, são incompatíveis. Sempre que uma zona de passagem em área residencial se prepara para gelar, como seja um passeio ou umas escadas, logo nela se derramam quilos e quilos de cristal de sal para promover o degelo, evitando que os acidentes possam acontecer.
O encanto e a beleza da neve são sempre maiores para aqueles que não nasceram nas latitudes onde existe em abundância e cai com frequência. Nunca vi neve ao vivo ou nunca vi nevar, deve ser muito, são declarações próprias de quem nutre um desejo intenso de vivenciar essa experiência, da mesma forma como há quem demonstre uma grande vontade de observar o mar sem fim e de nele se banhar.
Vivenciar nas montanhas a experiência da neve ou de um nevão é com toda a certeza uma realidade completamente diferente, mas à qual sou quase alheio.
Na memória conservo, porém, umas idas à Serra da Estrela e outras ao Alpes suíços e às Ardenas belgas onde pude de facto apreciar outra dimensão da presença dos flocos em altitude, mas sempre com o toque de um voyeur citadino a quem lhe escapa a violência e os uivos das furiosas tempestades de branco vestidas.
Com a mudança climática e o aquecimento do planeta cada vez neva menos, os glaciares derretem, as calotas polares vem diminuindo de extensão e formam-se enormes icebergues que vagueiam à deriva pelos mares levados ao sabor das correntes dos oceanos ártico ou antártico, num ziguezaguear errante e perigoso para a navegação marítima.
O paradigma das quatro estações encontra-se em rápido desenvolvimento, pelo que é melhor ir saboreando tudo o que nos é dado a provar a cada momento do tempo antigo, pois o novo traz fenómenos extremos como bem temos presenciado nos últimos no nosso país. Faça sol, frio, chuva, vento ou neve brindemos à vida e sejamos gratos pelos dias felizes.