Memórias da Menina dos olhos brilhantes, Covilhã 1961
As memórias são assim…quando menos se espera… aí estão elas.
Basta uma frase, uma imagem…
Hoje alguém partilhou uma fotografia dos botões com que brincava e pronto!
Aí estava eu com 5 anos sentada com a Mimi nas escadas da entrada de nossa casa, na rua S. João de Deus, a brincar com a caixa dos botões da madrinha Luisa.
Brincar com os botões era normal lá em casa.
Desde pequenina que sem saber, aprendia com os botões!
Dividia-os por cores, por tamanhos, fazia combóios de botões iguais…enfim, era um nunca mais acabar de aprendizagens matemáticas a brincar.
A madrinha Luisa e a menina Filipa, atarefadas com o enxoval da minha madrinha Júlia que estava quase a casar, a única coisa que queriam é que eu estivesse entretida e sossegada, para as deixar trabalhar.
O avô, que nunca vi pegar numa agulha, raramente se juntava a nós na salinha da costura. Gostava mais estar com o nariz enfiado nos jornais ou nas revistas ou a fazer paciências com as cartas.
Mas naquele dia foi diferente!
Tinha perdido um botão do seu precioso sobretudo preto e desceu as escadas para ver se a filha por um acaso teria algum botão igual.
Quando viu a mesa cheia de montinhos de botões, dividos por cores, tamanhos e formas, logo a sua cabeça fervilhante começou a trabalhar.
Sentou-se ali ao meu lado e vendo que eu identificava bem os montes que tinham mais e os que tinham menos… passou à aula de aritmética.
– Então tu tens aí 3 botões, dizia ele, pondo à minha frente 3 botões vermelhos redondinhos.
Mas eu vou-te dar mais 2 botões.
Com quantos botões ficaste?
Com a língua no canto da boca lá ia contando os botões e aprendendo a somá-los.
Foi uma descoberta sensacional.
Na pressa do avô, passou logo para papel com números, traços e sinais, mas eu só sabia somar com a ajuda dos botões.
Dois ou tres dias depois, a Tixã foi lá a casa levar ums linhas de crochet à minha madrinha e levou a Mimi para brincar comigo.
Depois do lanche, toda inchada, disse logo à Mimi que já sabia fazer contas de somar.
A Mimi era e é mais velha que eu quase 3 anos o que em idade de aprendizagem era muuiiito.!
Claro que não acreditou que aquela pirralha soubesse fazer contas de somar que ela estava a aprender na escola.
E logo ali na escada, com a ajuda de um canto de uma telha, desenhou uma conta no chão para eu resolver.
Novamente com a lingua no canto da boca(gesto que ainda agora faço quando estou concentrada), tentei fazer a conta.
Ainda não tinha aprendido a contar pelos dedos (era muito inocente…) e estava a ser difícil mostrar a minha sabedoria.
De repente levantei-me, fui à sala buscar a lata dos botões e logo ali como tinha aprendido, resolvi a conta da Mimi.
– Ora, ora, disse a Mimi, só sabes fazer com botões!!! Na escola não tens botões!
Com o ego um pouco abalado, lá meti os botões na lata e passados 2 minutos já estávamos a brincar às escondidas, brincadeira que se estendeu até a TiXã aparecer já com o sol a esconder-se e ir embora para casa de mão dada à Mimi.
Eram quase horas de jantar, o padrinho já tinha chegado há muito tempo, o avô estava em casa dele e a porta fechou-se para a noite.
Ao outro dia, logo de manhã, a Menina Filipa ao subir as escadas viu a lata dos botões encostada ao degrau de cima.
Claro que pegou nela e a levou para dentro. Não tardou muito quando ouvi assustada:
– Quica… anda cá Quica!
Mas o que é que eu teria feito, para a madrinha me chamar com aquela voz zangada?
A correr lá fui ter com ela
– Foste tu que pegaste na caixa dos botões? Perguntou a madrinha com a caixa na mão.
– Foi ontem madrinha, para fazer contas com a Mimi. Respondi eu admirada com a confusão e a zanga.
– Foste buscá-la ao armário, não foi?
Eu abanava a cabeça a dizer que sim, continuando sem entender bem a zanga, porque eu ia muitas vezes buscar a caixa dos botões.
– E onde é que a guardaste?
Ahhh!!! Tinha-me esquecido de guardar a lata!
– Foi só para as contas… Balbuciei eu já muito preocupada.
-Ah foi? Pois agora já não fazes mais contas!
E abriu a lata que estava vazia, vaziínha de todo!!!
Os botões tinham desaparecido.
Alguem ao passar na rua tinha visto a lata, tinha guardado os botões e tinha deixado a lata vazia.
Quando o avô chegou para o almoço, eu estava de castigo sentada na minha cadeira azul, com ordens de não me levantar, não comer gelados até ao fim de semana, não ir brincar para o quintal e nunca mais pegar na lata dos botões.
O avô ao saber o que se tinha passado não conseguiu passar sem dar uma das gargalhadas dele que lhe sacudiam o corpo todo e com a lata na mão, virou-se para mim e perguntou:
– Então Quica, tinhas uma lata cheia de botões, roubaram os botões todos, com quantos ficaste?
Foi a minha primeira conta de deminuir…ou de sumir!!!
Durante anos e anos contei esta história aos meus alunos e durante anos e anos tive sempre nas salas botões enormes e coloridos para as crianças poderem brincar e aprender.
Sejam muito felizes
Beijinhos
PS: A fotografia é da lata verdadeira dos botões da minha madrinha que terá seguramente quase 100 anos. É a minha mana Magui que a tem guardada.