fbpx
Quica Melo
 |  ,

Botijas & cafeteiras

Memórias da menina dos olhos brilhantes 

Aconteceu mais uma vez!

“Há muitos anos que uso botijas de água quente  de uma determinada marca.

Normalmente de 3 em 3 anos, compro uma nova porque como lhes dou muito uso a borracha começa a ficar desgastada com a água quente.

Ora, a marca que costumo comprar deixou de ser distribuída por estes lados.

Assim, fui à net ver se descobria onde existiriam à venda as ditas botijas resistentes e… zás!

Uma imagem saltou do ecrã, entrou-me pelos olhos, deu a volta à caixa das memórias e pimba : ali fiquei eu com o coração a palpitar com uma simples fotografia de uma botija com mais de 62 anos.

Na Covilhã dos anos 59/60 eram comuns as botijas latão ou de cobre.

Lá em casa havia 3 botijas mas normalmente só uma era utilizada na cama dos meus padrinhos.

Todas as noites de inverno, depois da cozinha arrumada e do terço rezado, havia o ritual da botija do padrinho Bicho.

Na casa da Covilhã havia a mania das cafeteiras a que eu, criança pequena, prestava muita atenção.

Havia 2 cafeteiras, uma pequena e outra grande, que SÓ serviam para fazer e chá e mais nada.

Depois havia a cafeteira da cevada que também SÓ servia para o liquido escuro de que eu nunca gostei.

Por fim, havia uma cafeteira de bico comprido que só servia para aquecer a água da botija e que eu podia jurar que nunca vi ser lavada.

Era essa cafeteira que me fascinava nas noites de inverno.

A madrinha Luísa, rezado o terço, recolhia à sala onde metia as pernas debaixo das saias da mesa para se aquecer enquanto lia mais umas páginas do seu livro na companhia do padrinho Bicho que sentado no sofá bege com um vivinho vermelho à volta,  lia as  notícias do jornal ou escrevia letras pequeninas na sua agenda anual.

Eu ficava sempre na cozinha com a Guigui acompanhando a rotina de que tanto gostava

Só os olhos acompanhavam a dança…

Quase sempre o sono já espreitava àquela hora e lembro-me como se fosse hoje de estar ajoelhada na cadeira de palhinha azul, com a cabeça apoiada nas mãos cruzadas em cima da mesa fria de mármore.

A Guigui punha-se em bicos de pés para chegar à prateleira de cima e pegava pelo cantinho da cafeteira que eu esperava sempre que caísse, sem isso acontecer.

Depois, enchia-a metodicamente até à marca que a água fervida de anos deixara nas paredes interiores.

Posta a cafeteira no fogão a gás que só servia para pequenas coisas, pegava na caixa mágica dos fósforos, de onde tirava um e acendia com aquele movimento rápido dos dedos e fazia nascer aquela coroa azul que ia aquecer a água.

Esticava então a mão para eu apagar o fósforo, como se eu fizesse anos todas as noites de inverno.

Enquanto a água aquecia, ia à despensa onde estava dependurada a botija e trazia-a para cima da mesa.

A botija estava vestida com uma roupa de flanela às cores, feita com amostras que vinham da fábrica.

A Guigui então puxava um bocadinho para baixo a camisa da botija(assim pensava eu porque nunca a vi tirar-lhe a roupa toda)

Depois da 1ª gaveta do armário com folhos de porquinhos, tirava a tampa da botija que tinha uma rodela cor de laranja de que eu gostava muito e que uma vez me levou a ter uma aventura que talvez eu conte um dia.

O barulho das borbulhas da água já se ouvia e num instante a Guigui fazia desaparecer a coroa azul que aquecia a cafeteira.

Era aí que as coisas literalmente aqueciam…

A Guigui com uma pega grossa com flores bordadas que amoganhava na mão, pegava na cafeteira e virava-se para a mesa onde a botija esperava em pé com a camisa puxada para baixo e com a boca dourada escancarada.

Também os meus olhos se escancaravam com muita atenção para ver a manobra delicada de encher a barriga da botija com aquela água que deitava fumo e que segundo o que a Guigui dizia, era muito, muito perigosa.

A água entrava pela boca e ia fazendo barulhos diferentes até chegar à barriga da botija. Aí a Guigui ainda enchia mais devagarinho até estar cheia quase até à boca.

Nunca, mas nunca mesmo, durante 19 anos que vivi com a Guigui, vi uma só pinga de água fugir da boca da botija.

Depois a Guigui punha a rolha, que fazia andar à roda até a boca estar bem tapada.

De seguida puxava a camisa da botija e com a ajuda de um pano pegava nela e virava-a de cabeça para baixo para ver se a boca tinha ficado bem fechada, não fosse ela ter vontade de “ molhar”a cama.

No fim puxava os cordões da camisa e como se fosse um saco de pão e dava aquele nó que eu só aprendi a dar quando era crescida.

Faltava a peregrinação até ao quarto, com a botija  bem embrulhada num pano para não queimar as mãos.

Era então posta a dormir dentro da cama dos padrinhos, atravessada ao fundo para aquecer os dois lados.

Faltava dar um beijinho aos padrinhos e dizer “até amanhã se Deus quiser” e ir para cama onde não dormia nenhuma botija, rezar ao Menino Jesus e esperar que a madrinha Luisa me fosse dar mais  um beijinho, aconchegar a roupa e apagar a luz, deixando uma fisguinha da porta aberta para entrar a luz do corredor.

Assim eram os finais das noites de inverno na casa das persianas azuis da rua S João de Deus, onde morava uma menina pequena, sem a companhia de outras crianças, mas rodeada de crescidos que a enchiam de atenção e carinho.

Ah! De manhã a madrinha acordava a botija, abria-lhe a boca e despejava-a para o lavatório onde eu lavava a cara com a água da sua barriga que estava sempre morninha e sabia muito bem!

Continuo a usar botija no inverno ou quando preciso de aliviar as dores nas costas. Dou por mim muitas vezes a pensar nas noites da Covilhã onde botijas e cafeteiras eram as protagonistas do ritual de ir para a cama.

Muitos  beijinhos

Sejam felizes, com botija ou sem ela.

Créditos Imagem:

@Unsplash Free Photos

© 2022 Direitos reservados. É expressamente proibida a reprodução na totalidade ou em parte, em qualquer tipo de suporte, sem prévia permissão por escrito da Segue News. | Prod. Pardais ao Ninho.