“O meu nome é Catarina Varges.
Sou mulher, mãe, economista, colaboradora de uma grande empresa nacional. Adoro ler, ouvir música e ver espetáculos ao vivo, sejam concertos, teatro, ballet ou ópera. Faço desporto (corrida, caminhada, ténis, ginásio), adoro viajar e conhecer mundo. Onde sou mais feliz é junto ao mar
Adoro viver e aproveito tudo o que a vida tem para me dar.
Tenho 49 anos e fui diagnosticada com Doença de Crohn há 20 anos. Embora as manifestações da doença já fossem notórias desde muito cedo.”
“Com apenas 29 anos um diagnóstico de uma doença sem cura, não é fácil de interiorizar. Especialmente quando as limitações a que a doença nos obriga, são tantas, que nos leva a perguntar como vai ser o resto da vida, especialmente quando queres mesmo e intensamente, viver.
Comecei a ter sintomas da doença ainda adolescente. A primeira cirurgia a que fui submetida foi a duas fistulas, quando tinha apenas 16 anos. Daí até ao diagnóstico, os sintomas foram variáveis e foram aparecendo e desaparecendo, o que fez com que não se procurasse uma causa concreta para os sintomas. As infeções constantes, nódulos pelo corpo, constantes aftas, cólicas, e oscilações entre diarreias e prisão de ventre, foram sintomas que me assolaram ao longo dos anos.
No entanto, só em 2001 é que as manifestações da doença eram de tal forma expressivas que se tornou impossível ignorar e não procurar, mais a fundo, uma causa.
Comecei por não conseguir comer sem ter dores abdominais fortes. Vieram as diarreias que chegavam a ser de dezenas de dejeções por dia, depois comecei a ter sangue e pus nas fezes e muitas dores no ânus e no interior do intestino. As minhas análises estavam muito alteradas e apareceram-me nódulos pelo corpo, nas mais variadas zonas. E as articulações ficaram inflamadas e com muitas dores, nas mãos, joelhos e pés. Deixei de conseguir andar, porque não tinha força e as dores nas articulações e nas zonas infetadas (devido a fístulas peri anais) eram muito intensas. Perdi 16 kilos em 6 meses.
Durante estes 6 meses fui a diversos médicos e nenhum conseguiu descobrir o que se passava. O primeiro diagnóstico foi cansaço e ansiedade (tinha uma filha pequena, trabalhava a tempo inteiro e estava a fazer um MBA. Parecia um diagnóstico óbvio.) No entanto, receitavam-me vitaminas e calmantes, o que só piorou a situação, dado que o ferro das vitaminas tornou os sintomas ainda mais expressivos.
Só em setembro de 2002, é que, pelas mãos do incrível médico e ser humano, Professor Carlos Nobre Leitão, que me mandou fazer um Trânsito Intestinal, o diagnóstico foi confirmado como Doença de Crohn.
A partir desse momento começou todo um roteiro de exames, medicamentos e consultas constantes. A Doença ‘acalmou’, mas os sintomas, embora mais fracos, mantinham-se ativos.
Os principais sintomas continuaram a ser as diarreias, e as fístulas que apareciam com muita frequência e que obrigavam a cirurgias, colocação de setons e toma constante de antibióticos.
Fiz corticoides, mesalazina, azatioprina (imuran – imunossupressor oral), durante os primeiros anos da doença.
Como as fístulas, cada vez mais agressivas, teimavam em aparecer, a minha vida estava muito limitada. Alimentação muito reduzida na variedade, sem fibras, sem resíduos, muita dificuldade em me mexer, tive que deixar de fazer desporto e a dificuldade em trabalhar era imensa.
Sentia que não controlava nada da minha vida, e era com muita dificuldade, e com a grande ajuda dos meus pais, que tratava das minhas duas filhas, ainda pequenas e a precisar de muito apoio.
No entanto, quem olhava para mim, achava que estava ótima. Daí que sintamos muita incompreensão da parte de quem nos rodeia, porque parece que nos estamos a queixar sem motivo, porque parecemos bem e tentamos, por tudo, continuar a viver.
Em 2012, com 40 anos, e não havendo alternativa terapêutica que o Professor Nobre Leitão considerasse viável para a minha situação, foi óbvia a passagem para imunossupressores biológicos. Iniciei assim, em julho de 2013, e após mais uma cirurgia a uma fístula na virilha esquerda com um grande trajeto interno, a toma de infliximab.
Fui nessa altura para acompanhamento com a Professora Marília Cravo no Hospital Beatriz Ângelo, que foi também exemplar em todo o acompanhamento que me fez. O infliximab foi como um milagre na minha vida. Voltei a conseguir comer de forma mais variada, recuperei peso, voltei a conseguir andar e recomecei a minha vida normal de trabalho, desportiva e social.
Na verdade, foi como se tivesse ganho mais uma oportunidade de viver plenamente e fazer o que mais me dava prazer.
Comecei a correr mais a sério, fazendo dessa a minha principal atividade de libertação, de momentos comigo mesma, e de combate ao stress.
Decidi, que iria treinar para fazer uma maratona (42,195 kms) e dedicá-la a esta mudança de vida e aos dois médicos fantásticos que nunca desistiram de me apoiar, acarinhar e procurar soluções.
Correr uma maratona exige uma preparação longa, física e mental. Decidi assim, que a minha primeira maratona seria na minha cidade de Lisboa, aos 42 anos. E assim fiz. Em outubro de 2015, fiz a maratona de Lisboa, que teve um sabor intenso a superação e a vida vivida plenamente.
Até 2018, a minha vida mudou completamente, para melhor, conseguindo muitas vezes esquecer a presença do Crohn na minha vida e conseguindo ter uma vida com boa qualidade. Fui fazendo, sempre que possível, tudo o que mais prazer me dá na vida.
Dei azo à minha paixão por espetáculos ao vivo, mesmo que sempre atenta ao local da casa de banho
Pese embora esta melhoria de qualidade de vida e de saúde, os sintomas iam aparecendo e alguns piorando.
Um dos sintomas que se foi tornando mais acentuado ao longo dos anos, foi a incontinência fecal.
É uma situação muito complicada de gerir, dado que nunca sabemos quando a necessidade de usar uma casa de banho chega, e quando chega é com a máxima urgência.
Diversas têm sido as situações em que não há tempo para chegar à casa de banho, sem que a dejeção se dê. Daí que ande sempre com mudas de roupa e toalhitas, para enfrentar essas eventualidades. E que tente, nas minhas atividades, não deixando de as fazer, mas fazê-las de forma controlada. Ou seja, saber sempre, antecipadamente, onde há casas de banho e, por exemplo, o desporto, faço-o em locais controlados, onde haja casas de banho e balneários por perto.
Estas situações são muito difíceis de gerir. Tanto a nível físico, como a nível psicológico e também a nível social.
Foi também essa uma das razões, além de muitas outras na minha vida, que estava com dificuldade em gerir sozinha, que me levaram a procurar ajuda. Iniciei com uma consulta com uma psicóloga e mantive acompanhamento em psicoterapia. Como a componente da ansiedade e da dificuldade em dormir, não se resolvia plenamente, iniciei também acompanhamento em psiquiatria, fazendo a medicação adequada para me apoiar. Este apoio foi fundamental, para conseguir encarar as adversidades de forma mais natural e perceber que estratégias devia usar para encarar as diversas adversidades da minha vida, de forma a conseguir geri-las e viver com elas de maneira menos limitativa.
Em 2019, e sem explicação aparente, tive um emagrecimento súbito, acompanhado de muitas dores abdominais e muita dificuldade em me alimentar sem ficar cheia de dores e com muito mau estar. Fiz inúmeros exames e nada foi descoberto como causa desta situação. A verdade é que a minha saúde estava a dar sinal.
Em simultâneo comecei com erupções cutâneas e feridas pelas mais diversas zonas do corpo, e com especial expressão no couro cabeludo, o que provocou uma queda de cabelo muito grande, dada a quantidade de feridas que iam aparecendo.
Em 2020, após disgnóstico de psoríase, fiz diversos tratamentos tópicos sem sucesso.
Concluiu-se então que esta situação era consequência e um efeito adverso, da toma de infliximab.
Após nova ronda de exames, decide-se então pela mudança de terapêutica biológica, de infliximab para ustekinumab.
Entretanto, o cabelo era tão pouco, e as feridas pelo couro cabeludo eram tantas, que optei por rapar todo o cabelo, para me aliviar a terrível comichão que me assolava de dia e de noite, há já mais de um ano. Desta forma, conseguia de maneira mais eficaz, colocar produtos tópicos, à base de cortisona que me ajudaram a suportar os meses que se seguiram e que envolveram já a toma de ustekinumab. Até janeiro de 2021, rapei o cabelo muitas vezes, até que a nova terapêutica começou a fazer efeito. Deixei então de ter feridas no corpo, e o cabelo recomeçou a nascer em couro cabeludo são.
Duas das minhas grandes paixões que procurei ter sempre presentes: o desporto e a praia
A toma de ustekinumab (Stelara) teve início em novembro de 2020.
Em janeiro de 2021, as melhoras eram já notórias, e de novo houve um período sem sintomas e de boa qualidade de vida, que não aproveitei mais, porque a pandemia estava em alta e estava resguardada em casa, sempre que possível.
No entanto, em agosto desse mesmo ano, as fístulas voltaram a aparecer, obrigando a nova paragem e à toma de antibióticos, que foram eficazes durante algum tempo.
Ou seja, esta terapia, embora eficaz tanto para o Crohn, como para a psoríase, não é tão eficaz na inibição do aparecimento de fístulas.
Em abril de 2022, apareceu mais uma fístula, sobre a qual o antibiótico não teve efeito.
Isto obrigou a obrigando a nova cirurgia no início do mês de agosto.
Felizmente foi possível limpar o orifício e o trajeto, conseguindo fechar a fístula, sem necessidade de colocação de setons, tendo o processo de recuperação e cicatrização decorrido da melhor forma possível.
Em setembro, já recuperada, voltei ao trabalho presencial, às minhas atividades desportivas e culturais, aos convívios com a família e amigos e a conseguir estar sentada sem almofada.
Ou seja, é tempo de voltar a aproveitar a vida, fazendo o que mais me faz feliz.
O desporto passei a fazer sempre em ambiente controlado, ou seja, em espaços onde possa ter acesso a uma casa de banho e balneários para o caso de algum ‘acidente’ acontecer.
Iniciei aulas de FitBoxing, que são um excelente anti stress
Também voltei ao ténis, desporto que me acompanhou toda a minha juventude.
O apoio de diversos grupos de doentes e para doentes, como o IBDFam, tem sido essencial, para partilhar experiências e não me sentir sozinha nos mais diversos sintomas e situações que me vão acontecendo.
Em resumo, esta Doença, tem diversos desafios que nos levam a ter que lidar com incertezas e surpresas, nem sempre agradáveis.
O meu desafio tem sido procurar enfrentar tudo isto com clarividência, realidade, sem dramas e sem romantismos.
Viver cada momento plenamente, aproveitando cada oportunidade para ser feliz.
Agradecer cada pequena situação que me acontece e que me traz um sorriso ao rosto ou um calorzinho ao coração.
E quando a doença não me permite viver como quero, e como gostaria, é encarar essa realidade de frente e procurar a ajuda que mais sentido faz para cada situação com que me vou deparando.
A doença não me define. Não sou a doença. E não podendo fazer muito para que ela deixe de se manifestar no meu corpo, posso optar pela forma de a encarar em cada uma das suas fases.”
Catarina Varges, doente de Crohn há 20 anos.
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