Carla Lemos é fotógrafa, nasceu em Moçambique e vive em Portugal. Convive desde muito jovem com a doença de Crohn e deu-nos na primeira pessoa o seu testemunho.
Nesta semana dedicada à Sensibilização da Doença Inflamatória do Intestino, a fotógrafa conta-nos como é ter de viver com uma doença silenciosa.
“Talvez o trabalho seja uma das marcas mais fortes que tenho carimbada na minha personalidade.
Foca-me, distrai-me, incentiva-me nesta caminhada que tem sido uma gigante prova de Trail Running para
mim.”
Quarenta e quatro anos a correr por trilhos impressionantes.
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Comecei aos 17 anos uma corrida cheia de quedas perigosas e recuperações, perdas e vitórias, mas
cheia de um entusiasmo que vou imaginando a cada minuto de vida.
Porque a vida pulsa, mesmo quando quase não estamos nela.
Não fui educada a queixar-me, pelo contrário, fui sempre desafiada a ser aquela fortaleza decente que se
mantém-se em pé, apesar das intempéries, e vive a sua história até que caia.
Foram treze anos no ensino, com ajuda de uma amiga e colega, e muita negociação com os médicos no
hospital, de onde saía para trabalhar com a promessa de regressar às horas certas dos tratamentos e
internamento, não suportei revelar a razão pelas perdas de quilos semanais, mensais, olheiras, corridas à
casa de banho, momentos estátua até me passarem as dores horríveis que sentia.
Vivia no silêncio e na invisibilidade, mas não me arrependo. Estou ainda hoje certa que a inclusão está
longe de ser uma realidade, e sinto-a muitas vezes como uma hipocrisia que serve de publicidade a quem
não tem que passar por dificuldades reais.
Decidi criar o meu próprio trabalho e poder controlar pelo menos a discrição que desejava sobre o
assunto.
Era uma amante da imagem, da arte, de observar, e por aí segui.
Uma área nada fácil, mas quem sabe o que são dificuldades, não teme e avança.
Desta forma preservei a minha intimidade, as minhas questões, e todo o tipo de discriminação, preconceito
e injustiças. Tudo isto existe e algumas vezes as minhas ausências foram razão para perder trabalho.
Os internamentos foram muitos, já nem sei quantos.
Muitas cirurgias, muitas más notícias se foram acumulando, como os anos também..
Numa sala de paredes envelhecidas e húmidas, vou conseguindo distrair-me com o trabalho, naquele
espaço a que os enfermeiros carinhosamente chamam “o escritório da Karla”.
Atendo chamadas de trabalho, resolvo o que consigo e assim fui aprendendo a abstrair-me logo cedo.
Ler inspira-me, e os meus amigos, porque tenho os melhores amigos do mundo, vão me carregando para
trás e para diante os livros que necessito ter para devorar, já que a alimentação nessas semanas se reduz
a medicação que pinga na veia em modo “bar aberto”.
Escrevo para limpar a alma, para afastar as sombras e trazer a luz que preciso para iluminar a minha
cena.
A doença roubou muito dos meus sonhos, dos meus dias, mas deu-me capacidade de repensar, de
reconhecer, de reavaliar e revalidar outros sonhos maiores e mais importantes, que se escondiam, afinal,
em forma de fantasmas que vivem assustados dentro de nós.
Porque a doença não é só nossa, mas sim de todos aqueles que nos amam, família, companheiros e
cuidadores, amigos que se tornam tão íntimos que os corações batem junto até!, partilho este curto
testemunho da parte frágil da fortaleza.
E assim avanço há quarenta e quatro anos, no meu Trail Running, naquele esforço necessário porque
estou viva, aquela vontade de me atirar ao chão que piso pelo cansaço sem fim, com aquela cara de no
‘pasa nada’, num corpo onde vão faltando peças imprescindíveis, mas devidamente quitado para mais um
dia que nasce e quero que seja o melhor dia possível.
– O que vais ser quando fores grande?
– Astronauta – respondia de imediato.
Sou fotógrafa, mas a minha alma é de astronauta, e a minha nave percorre galáxias.
Nasci em 1961, em Moçambique, terra que me deu esta força interior, e muito provavelmente este espírito
de sobrevivência.
Hoje vivo em Portugal, e muitas vezes, acabo fechada em CrohnLand, de onde vou saindo à socapa.”
Carla Lemos – Doença de Crohn desde 1978