Memórias da menina dos olhos brilhantes
Serra da Estrela 1959
Tenho falado muito da casa da Covilhã, na rua S. João de Deus e da relação emocional que tenho com aquelas paredes brancas que transpiram vivências felizes e tanto contribuíram para o meu desenvolvimento.
Mas há outra casa que tem sobre mim o mesmo fascínio. Enquanto a da Covilhã, era um relacionamento quase intimista, esta outra, era a que me levava para além de tudo o que conhecia e fazia nascer em mim emoções desconhecidas.
A Casa da Serra
Cresci e alimentei-me com o ar da serra a zunir nas orelhas, com o cheiro da urze e das giestas, com a carícia das coceguinhas espalhadas pelos caminhos, com o balir das ovelhas e o olhar intenso, inteligente e terno dos cães da serra, com a magia das penedias.
A minha imaginação pegava nessas descobertas e levava-as pela Serra, com os cabelos ao vento, o casaco a fazer de asas e o chapéu a fazer de paraquedas porque sempre nos fazia parar e voltar para trás para o apanhar.
De dia, pela mão da minha madrinha Luísa, de cesta no braço colhiamos urze, rosmaninho, campainhas, coceguinhas… descobríamos lagartixas, gafanhotos de mil cores que saltavam à nossa frente como se quisessem mostrar o caminho ou quem sabe, levar-nos a descobrir mundos encantados.
Na volta, abríamos o portão devagarinho para que o seu chiar não incomodasse o gordo e grande sardão que vivia no muro em frente à janela da cozinha, onde passava horas de pescoço esticado com os olhos de lagarto piscando de vez enquando.
Naquela casa todos respeitavam os que lá moravam. O sardão, as víboras que moravam na casa da lenha, os lacraus que saíam à noitinha debaixo dos calhaus e até as doninhas que faziam a madrinha Júlia ficar com os cabelos em pé.
Todos tinham direito ao seu espaço porque o avô dizia que antes das casas com telhado chegarem, já as casas de pedras e calhaus onde eles viviam existiam.
Era muito raro no inverno ficarmos a dormir na casa da Serra, mas de longe a longe, isso acontecia.
As noites de inverno eram frias, à volta da lareira, sentada nas pernas do avô, enquanto ele contava uma história, com o fumo a vestir-nos camisolas de cheiros que entravam nos nossos corpos e brincavam com os nossos cabelos deixando tudo com aquele aroma quentinho de casa aquecida com lenha.
– Avô, ouves? E a menina encostava-se mais a ele, porque era instintivo a procura de segurança.
Ao longe, que para uma menina pequenina parecia perto, ouviam-se os lobos a uivar, um som que se esticava pela floresta e pelas penedias e se infiltrava pelas portadas e chaminés das casas das Penhas.
– Oiço como tu!
E apurando o ouvido dizia certo de que sabia:
-São pelo menos 5…estão a responder uns aos outros!
Naquela casa não havia medo dos lobos. Estávamos em 1959 e os lobos ainda abundavam na serra. O avô dizia que os lobos eram corajosos e muito amigos dos filhos.
-mas avô, eles comem as ovelhas e engoliram os cabritinhos da história!
Dizia a menina que por muito corajosa que quisesse ser, se arrepiava sempre um bocadinho.
-E tu também comes cabritos! Todos temos de comer para não morrermos.
A menina nunca tinha pensado naquela coisa de também comer cabritos… era muito esquisito! Depressa se imaginou com cabeça de lobo a comer cabritos, mas depois compreendeu que eram os cabritos que o Sr. Zé levava lá a casa em cima do burro, metidos em sacos castanhos com as orelhas ou patas de fora.
O avô então, vestiu o capote, pôs uma manta à volta da menina, pegou no candeeiro de petróleo e levou a menina para a varanda.
Sentaram-se na cadeira que tinha um colchão de arame que fazia muito barulho e ficaram os dois muito quietos com a mão da menina muito pequenina agarrada à mão grande e com muito pelo do avô e a cabeça encostada no seu peito para poder olhar para o céu.
-ó avô, que estrela é aquela tão branca e brilhante?
-É a Estrela da manhã! É aquela que os anjos acendem primeiro e apagam no fim.
– mas são os anjos a sério que acendem as estrelas?
Perguntou baixinho as menina, porque eram tantas estrelas, que devia haver montanhas de anjos por ali a acende-las e ela sabia que os anjos não gostavam de barulho.
O avô ia responder, mas em vez disso ficou muito quieto e a olhar muito sério para a noite escura. Então, segurou muito bem a menina e pôs-lhe um dedo nos lábios para lhe dizer que não devia fazer barulho.
Levantou o candeeiro só um niquinho e apontou para o outro quintal.
A menina viu então uns olhos brilhantes no meio de duas orelhas grandes que depressa se mexeram e desapareceram no escuro da noite, fazendo barulho com as patas a calcar os ramos secos.
Em surdina, bem agarrada ao pescoço do avô a menina disse:
-Era um lobo, avô, era um lobo. Eu vi um lobo e não tive medo, pois não avô?
E ouviam-se agora vários uivos, vindos de lugares diferentes.
– Sim, era um lobo e não precisas de ter medo. Só tens de os deixar ir à vida deles. Andam à procura de comida para levarem aos filhos.
E ali ficaram os dois a olhar para as estrelas com os uivos dos lobos a esconderem-se na noite.
O avô ia dizendo onde estava a Cassiopeia, a ursa maior, a ursa menor, até que a cabeça da menina se aninhou melhor no seu peito e os olhos se foram fechando, talvez sonhando com lobos, raposas, e gafanhotos que saltitavam nos seus sonhos por entre urze rosa e branca e coceguinhas onde a casa branca com telhado preto escondia os pés.
Já lá vão 63 anos mas a magia da vida da serra ainda hoje me dá beijos de urze e rosmaninho.
Beijinho avô Barata
Beijinho madrinha Luisa
Espero que no céu haja casas da serra com telhados pretos e coceguinhas nos pés.
Vocês sabem o quanto eu vos adoro.
Minha serra linda, minha estrela, abraço-te com uma saudade imensa.
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