fbpx
Quica Melo
 |  ,

A casa branca com telhado preto e coceguinhas nos pés

Memórias da menina dos olhos brilhantes

Serra da Estrela 1959

Tenho falado muito da casa da Covilhã, na rua S. João de Deus e da relação emocional que tenho com aquelas paredes brancas que transpiram vivências felizes e tanto contribuíram para o meu desenvolvimento.

Mas há outra casa que tem sobre mim o mesmo fascínio. Enquanto a da Covilhã, era um relacionamento  quase intimista, esta outra, era a que me levava para além de tudo o que conhecia e fazia nascer em mim emoções desconhecidas.

A Casa da Serra

Cresci e alimentei-me com o ar da serra a zunir nas orelhas, com o cheiro da urze e das giestas, com a carícia das coceguinhas espalhadas pelos caminhos, com o balir das ovelhas e o olhar  intenso, inteligente e terno dos cães da serra, com a magia das penedias.

A minha imaginação pegava nessas descobertas  e levava-as pela Serra, com os cabelos ao vento, o casaco a fazer de asas e o chapéu a fazer de paraquedas porque sempre nos fazia parar e voltar para trás para o apanhar.

De dia, pela mão da minha madrinha Luísa, de cesta no braço colhiamos urze, rosmaninho, campainhas, coceguinhas… descobríamos lagartixas, gafanhotos de mil cores que saltavam à nossa frente como se quisessem mostrar o caminho ou quem sabe, levar-nos a descobrir mundos encantados.

Na volta, abríamos o portão devagarinho para que o seu chiar não incomodasse o gordo e grande sardão que vivia no muro em frente à janela da cozinha, onde passava horas de pescoço esticado com os olhos de lagarto piscando de vez enquando.

Naquela casa todos respeitavam os que lá moravam. O sardão, as víboras que moravam na casa da lenha, os lacraus que saíam à noitinha debaixo dos calhaus e até as doninhas que faziam a madrinha Júlia ficar com os cabelos em pé.

Todos tinham direito ao seu espaço porque o avô dizia que antes das casas com telhado chegarem, já as casas de pedras e calhaus onde eles viviam existiam.

Era muito raro no inverno ficarmos  a dormir na casa da Serra, mas de longe a longe, isso acontecia.

As noites de inverno eram  frias, à volta da lareira, sentada nas pernas  do avô, enquanto ele contava uma história, com o fumo a vestir-nos camisolas de cheiros que entravam nos nossos corpos e brincavam com os nossos cabelos deixando tudo com aquele aroma quentinho de casa aquecida com lenha.

– Avô, ouves? E a menina encostava-se mais a ele, porque era instintivo a procura de segurança.

Ao longe, que para uma menina pequenina  parecia perto, ouviam-se os lobos a uivar, um som que se esticava pela floresta e pelas penedias e se infiltrava pelas portadas e chaminés das casas das Penhas.

– Oiço como tu!

E apurando o ouvido dizia certo de que sabia:

-São pelo menos 5…estão a responder uns aos outros!

Naquela casa não havia medo dos lobos. Estávamos em 1959 e os lobos ainda abundavam na serra. O avô dizia que os lobos eram corajosos e muito amigos dos filhos.

-mas avô, eles comem as ovelhas e engoliram os cabritinhos da história!

 Dizia a menina que por muito corajosa que quisesse ser, se arrepiava sempre um bocadinho.

-E tu  também comes cabritos! Todos temos de comer para não morrermos.

A menina nunca tinha pensado naquela coisa de também comer cabritos… era muito esquisito! Depressa se imaginou com cabeça de lobo a comer cabritos, mas depois compreendeu que eram os cabritos que o Sr. Zé levava lá a casa em cima do burro, metidos em sacos  castanhos com as orelhas ou patas de fora.

O avô então, vestiu o capote, pôs uma manta à volta da menina, pegou no candeeiro de petróleo e levou a menina para a varanda.

Sentaram-se na cadeira que tinha um colchão de arame que fazia muito barulho e ficaram os dois muito quietos com a mão da menina muito pequenina agarrada à mão grande e com muito pelo do avô e a cabeça encostada no seu peito para poder olhar para o céu.

-ó avô, que estrela é aquela tão branca e brilhante?

-É a Estrela da manhã! É aquela que os anjos acendem primeiro e apagam no fim.

– mas são os anjos a sério que acendem as estrelas?

Perguntou baixinho as menina, porque eram tantas estrelas, que devia haver montanhas de anjos por ali a acende-las e ela sabia que os anjos não gostavam de barulho.

O avô ia responder, mas em vez disso ficou muito quieto e a olhar muito sério para a noite escura. Então, segurou muito bem a menina e pôs-lhe um dedo nos lábios para lhe dizer que não devia fazer barulho.

Levantou o candeeiro só um niquinho e apontou para o outro quintal.

A menina viu então uns olhos  brilhantes no meio de duas orelhas grandes que depressa se mexeram e desapareceram no escuro da noite, fazendo barulho com as patas a calcar os ramos secos.

Em surdina, bem agarrada ao pescoço do avô a menina disse:

-Era um lobo, avô, era um lobo. Eu vi um lobo e não tive medo, pois não avô?

E ouviam-se agora vários uivos, vindos de lugares diferentes.

– Sim, era um lobo e não precisas de ter medo. Só tens de os deixar ir à vida deles. Andam à procura de comida para levarem aos filhos.

E ali ficaram os dois a olhar para as estrelas com os uivos dos lobos a esconderem-se na noite.

O avô ia dizendo onde estava a Cassiopeia, a ursa maior, a ursa menor, até que a cabeça da menina se aninhou melhor no seu peito e os olhos se foram fechando, talvez sonhando com lobos, raposas, e gafanhotos que saltitavam nos seus sonhos por entre urze rosa e branca e coceguinhas onde a casa branca com telhado preto escondia os pés.

Já lá vão 63 anos mas a magia da vida da serra ainda hoje me dá beijos de urze e rosmaninho.

Beijinho avô Barata

Beijinho madrinha Luisa

Espero que no céu haja casas da serra com telhados pretos e coceguinhas nos pés.

Vocês sabem o quanto eu vos adoro.

Minha serra linda, minha estrela, abraço-te com uma saudade imensa.

Créditos Imagem:

Quica Melo

© 2022 Direitos reservados. É expressamente proibida a reprodução na totalidade ou em parte, em qualquer tipo de suporte, sem prévia permissão por escrito da Segue News. | Prod. Pardais ao Ninho.