Esta memória é talvez a mais antiga da minha infância e a que guardo com mais carinho…
A menina dos olhos brilhantes acordou como quase todos os dias, com o cheiro que vinha da cozinha, de cevada acabada de fazer.
Ela não gostava de leite com cevada, mas gostava do cheirinho que se espalhava de manhã pela casa.
Era tão bom e tão intenso que quase se podia cortar às fatias e comer como gulodice
Do quarto da madrinha vinham os ruídos surdos habituais, do padrinho a acabar de se arranjar.
O tic tic dos chinelos já tinha dado lugar ao ligeiro chiar dos sapatos de sola; portanto, a saída estava para breve.
A menina aguardava pacientemente debaixo dos lençóis, enquanto mantinha atentos os ouvidos.
Um ligeiro, muito ligeiro estalido da porta, que o padrinho era muito cuidadoso para não acordar a madrinha Gija, deu a entender que já tinha saído do quarto.
As patitas do Bobi arranharam o chão para se ir despedir do dono à porta, de onde só saía quando ouvia o carro arrancar.
Devagarinho, como fazia quase todos os dias, para não alvoraçar o Bobi ou a Guigui, os pés pousaram no soalho brilhante de cera.
Meteu a camisola do pijama para dentro das calças para não apanhar frio e lá foi pé ante pé para o corredor.
A passadeira de sisal castanha com bordas vermelhas, picava um bocadinho e fazia coceguinhas por entre os dedos quando seguia em biquinhas de pés.
Chegou à porta, que como sempre tinha uma fisguinha aberta e escapuliu-se lá para dentro.
Ficou um bocadinho parada para habituar os olhos à diferença da luz.
De imediato foi invadida pelo cheiro habitual das manhãs no quarto da madrinha Gija. Cheirava a sabão da barba, a chá quente e a bolo de arroz.
O padrinho Bicho tomava todos os dias o pequeno almoço no quarto, onde na noite anterior a Guigui deixava um tabuleiro com um paninho bordado, onde pousava uma garrafa termos com chá bem quente, uma chávena e a caixa com bolos de arroz do Sr. Zé da Lisbonense. E
Franziu os olhos para ver melhor e lá viu pousado em cima do pano, um cantinho do bolo, da parte de cima do açucar ( vá-se lá saber como o padrinho adivinhava) , a menina petiscava todas as manhãs.
Depois, subia para a cama, sempre pelo fundo para não abanar muito o colchão e devagarinho metia-se entre os lençóis, onde invariavelmente adormecia novamente numa névoa de sabão da barba e de boca adocicada com bolo de arroz.
Passadas mais ou menos duas horas, acordava com a habitual brincadeira!
– Anda aqui um ratinho na minha cama, ai anda anda, dizia a madrinha Gija enquanto metia as mãos debaixo dos lençóis e lhe fazia cócegas.
Os gritinhos eram muitos e esganiçados.
Todos os dias era um animal diferente.
– Não é um rato, é um coelho!
– E como fazem os coelhos?
E a menina franzia o nariz, punha as mãos na cabeça a imitar as orelhas do coelhito
– sai daqui coelhinho, que me sujas a cama toda!
E a menina metia a cabeça debaixo do travesseiro e dava pinotes a dizer que dali não saía porque era a casinha dela.
Por ali passavam ratos, coelhos, porcos, gatos, cabritos e até gordas vacas ou irrequietos cavalos num tropel de pés e pernas aos pinotes pelo ar…
Depois a madrinha Gija abria umas fisgas da persiana azul e a magia começava.
Os raios de luz filtravam-se pelas aberturas da persiana, misturavam-se com a poeira que andava no ar e formava uma estrada de poalha dourada que acabava precisamente em cima da cómoda onde estava a caixinha dos miosótis.
Era um momento mágico… quase sagrado.
A menina ficava com os olhos colados àquela estrada que se movia lentamente em doce e luminoso rodopio…
A madrinha Gija, um dia disse à menina que era a estrada das fadas que vinham acordar os miosótis.
Então ficavam ali as duas, iluminadas por aqueles pequenos raios de luz a imaginar que fadas de mil cores vinham dar beijinhos aos miosótis.
– olha a fada verde! Dizia a menina em surdina, para não as espantar.
– É a fada dos trevos… vês a coroa de flores brancas que tem na cabeça? Dizia madrinha.
– Aquela é amarela!
– É a fada que acorda as giestas!
E seguiam-se fadas de todas as cores, que acordavam a chuva, o arco-íris, as borboletas…
Ali ficavam as duas, uma com 3 anos, a outra com 51, a brincar com as fadas imaginadas, que voavam uma réstia de luz filtrada pelos buraquinhos de uma persiana azul
Vai daqui um beijinho para o Céu onde espero que a minha madrinha Luísa esteja num campo semeado de miosótis, violetas, urze e rosmaninho.
Para a minha madrinha que continua viva no meu coração, num cantinho forrado de amor, admiração e gratidão.
Continua por favor a olhar por nós…
Aqui fica o meu amor.